JOSÉ FIGUEIREDO

SOBRE A DESIGUALDADE: Salário mínimo e salário máximo

Em relação ao tema da desigualdade, como em geral acontece com os temas complexos, é muito mais fácil enunciar os problemas do que resolvê-los.
Mas antes de entrarmos propriamente no domínio das putativas soluções ainda necessitamos de precisar um pouco mais os conceitos.
É necessário distinguir entre a desigualdade primária, a que resulta da distribuição de rendimentos pelo funcionamento “normal” da economia, e a desigualdade que “sobra” depois da intervenção do estado através dos mecanismos de protecção social.
O gráfico seguinte mostra como esta distinção é importante:

 

Estamos habituados a pensar que os países mais igualitários do mundo são as sociais-democracias do norte da Europa o que é rigorosamente verdade.

De facto, os coeficientes de Gini, após a redistribuição do estado (barras azuis mais escuras), são nessas paragens os mais baixos do mundo.

Contudo, se olharmos para os coeficientes de Gini antes da intervenção do estado (barras azuis mais claras) vemos que eles não variam assim tanto e que mesmo os Estados Unidos têm um coeficiente semelhante ao da França ou da Alemanha. Ou seja, as políticas públicas fazem toda a diferença.
Uma segunda distinção é entre a desigualdade que resulta da diferença de oportunidades e a que resulta do esforço e do talento individuais.
Esta distinção é importante porque se é fácil ter repugnância moral pela primeira é muito mais difícil argumentar moralmente contra a segunda. De facto, numa sociedade em que todos partissem de uma posição similar e onde o que tem mais o deve exclusivamente ao seu trabalho e/ou ao seu talento, não há argumento moral contra a desigualdade.
Claro que isto é uma falácia. Desde logo porque seria necessário garantir a proporcionalidade entre talento e remuneração. Depois porque o argumento só pode ser válido para uma geração. Se no momento zero todos partirmos de situações similares é fatal que no momento um já não seja assim. Os mais dotados ou mais trabalhadores podem uma formação melhor aos seus filhos, podem influenciar positivamente as suas carreiras e o paraíso moral da similitude das oportunidades desaparece.
Caros liberais, não há como fugir ao problema moral!
Podemos lutar contra a desigualdade influenciando a distribuição primária dos rendimentos ou recorrendo a políticas públicas de redistribuição.
A forma mais antiga de limitar a injustiça da distribuição primária é a fixação de salários mínimos legais.
Os primeiros salários mínimos legais apareceram no final do século XIX, curiosamente, no mundo anglo-saxónico. Na Europa, o Reino Unido foi o primeiro a abraçar a ideia. Nos Estados unidos foi introduzido nos anos 30 do século passado por Theodore Roosevelt que defendia a medida contra os opositores liberais dizendo que se um negócio não pode pagar decentemente aos seus trabalhadores, então não tem direito a existir
Actualmente a maior parte dos países da OCDE têm salários mínimos fixados na lei. Num total de 34 membros, 26 têm salários mínimos legais. Na União Europeia a 27, 18 países têm salários mínimos legais. Entre os que não têm contam-se a Alemanha (vai ter a partir de 2015), a Itália, a Suécia, a Dinamarca, a Finlândia, a Áustria e Chipre. Nestes países a fixação dos salários mínimos não está na lei mas nos acordos sectoriais entre patrões e trabalhadores.
Embora o salário mínimo legal tenha uma força moral enorme e actualmente faça parte do ordenamento político/social do mundo desenvolvido, a verdade é que o conceito foi sempre muito polémico quer entre políticos quer entre economistas.
O argumento liberal mais sólido contra a fixação do salário mínimo legal é que, contrariamente às boas intenções dos seus defensores e promotores, o salário mínimo pode prejudicar aqueles que visa defender.
Em princípio, os mais desprotegidos, os que podem ser forçados a aceitar salários mais baixos, são os menos qualificados (competências escassas) e os mais jovens (escassa experiência).
Se o salário mínimo for fixado muito alto em relação ao salário mediano (para este efeito a mediana é mais importante que as média) os grupos mais desprotegidos correm o risco de empregabilidade.
Imaginem que o salário mediano em Portugal ronda os 900 euros por mês. Se o salário mínimo estivesse demasiado encostado aos 900 euros, muito dificilmente os menos qualificados e os mais jovens encontrariam trabalho. De facto, porque razão se contrataria um jovem sem experiência ou alguém sem qualificações se é possível contratar, quase pelo mesmo salário, gente experiente e qualificada?
Os economistas liberais, como Milton Friedman, defendiam que o melhor é deixar o mercado funcionar e, caso se pretenda proteger os mais pobres, usem-se os subsídios públicos para o efeito.
Aqui, como quase sempre, os economistas liberais fundamentam a sua visão do mundo e da vida num pressuposto que considero errado: o da neutralidade moral dos mercados, ou seja, na ideia de que os mercados não afectam, com o seu funcionamento, o valor moral daquilo que por lá se transacciona.
Porventura, Milton Friedman e os seus seguidores esqueceram-se de que o trabalho tem uma dimensão moral, que não é indiferente para um cidadão ver reconhecida a dignidade do seu trabalho com uma remuneração justa ou ser injustamente pago pelo que faz mas compensado depois por políticas públicas generosas.
Eu, que até me esforço por ser liberal, sou um defensor dos salários mínimos fixados na lei geral do estado. Provavelmente se vivesse na Suécia, na Dinamarca, na Finlândia ou mesmo na Alemanha, sentir-me-ia confortável com um sistema de mínimos livremente fixado, sectorialmente, por patrões e empregados. É obviamente melhor que um salário mínimo único aplicável a toda a economia – o que está certo para a restauração pode estar menos certo para a construção civil. Mas, se bem sei do que a casa gasta aqui na Europa do Sul, “just in case”, deixem lá estar o salário mínimo fixado na lei e aplicável a todas as actividades.
Claro que os riscos enunciados pelos liberais não são imaginários, pelo contrário, são bem reais. Contudo, também aqui, é tudo uma questão de dose e de bom senso.
É evidente que não existe a balança de precisão que nos permita saber até onde, ao cêntimo, podemos levar o salário mínimo versus o salário mediano, sem desencadear os efeitos perversos de empregabilidade dos mais fracos.
Há, contudo, um certo consenso que, salários mínimos até 60% do salário mediano, não contêm risco de overdose. Quando olhamos para o quadro geral dos salários mínimos nos países da OCDE verificamos que a esmagadora maioria cumpre a regra prudencial.

O actual salário mínimo em Portugal deve andar um ligeiramente por baixo dos 60% do salário mediano e, em minha opinião, tem margem para subir um pouco. No documento que o PS encomendou a um grupo de economistas, a maioria independente do Partido, o tema do salário mínimo está ausente. Provavelmente porque nesse documento é proposta uma medida que pode, em certo sentido, ser alternativa a aumentos do salário mínimo – o “imposto negativo” sobre trabalhadores com rendimentos muito baixos.
O programa do PS ainda não está pronto à hora a que escrevo, por isso ainda não é líquido o que vai ser proposto pelo PS em matéria de salário mínimo. Em relação à actual maioria desconheço completamente o que alvitram sobre o tema.
Seja como, contrariamente ao que parecem pensar os economistas consultados pelo PS, defendo que a existência de “impostos negativos” para os trabalhadores com rendimentos muito baixos não é alternativa à actualização do salário mínimo – podem e devem coexistir as duas medidas.
Mas não se faz justiça apenas colocando um mínimo nos salários - a justiça exigiria também que se colocasse um máximo. Só que, enquanto a lógica do salário mínimo é quase consensual entre o mundo desenvolvido, salário máximo ainda não existe em nenhum país da OCDE.
Não se pense, contudo, que a ideia de fixar salários máximos, ou regras de cálculo para os salários máximos, na lei é um delírio de intelectuais mais ou menos diletantes. De todo! É um assunto que está a ser debatido um pouco por todo o lado e que um país altamente desenvolvido já colocou em referendo nacional.
Como isto hoje já vai longo fica para o próximo texto.

 

Data de introdução: 2015-06-12



















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