JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Legislação laboral ou a reincidência no pensamento mágico

Em Portugal já tínhamos a nossa dose de pensamento mágico neoliberal.

Há quem acredite, incluindo o atual governo, que é boa medicina baixar transversalmente os impostos sobre os lucros das empresas. O racional é o seguinte: baixando os impostos sobre os lucros as empresas ficam com mais fluxo de caixa livre. Com mais dinheiro disponível as empresas vão investir mais, gerar mais emprego e a economia entra num ciclo virtuoso de crescimento. Eventualmente a bonomia económica levará as empresas a pagar melhores salários.

Na verdade, trata-se pensamento mágico por várias razões. Saliento duas.

Desde logo porque nunca ninguém encontrou uma relação empírica estatística, de qualquer género, entre as taxas de imposição sobre os lucros das empresas e as taxas de investimento.

Depois porque as empresas podem dar ao acréscimo de fluxo de caixa disponível resultante da baixa dos impostos outros destinos que não o investimento. Podem pura e simplesmente acumular reservas e melhorar os balanços (menos mau!) ou (o que é pior) também podem distribuir mais dividendos e/ ou recomprar ações próprias (que é, no fundo, outra forma de distribuir pelos sócios).

No caso português, o pensamento mágico sobre descida generalizada dos impostos sobre os lucros das empresas falha por uma outra razão – no nosso país a esmagadora maioria dos impostos sobre lucros são pagos por um número muito reduzido de empresas, em boa parte situadas em setores de atividade que conseguimos identificar – banca, grande distribuição, telecomunicações e pouco mais. Trata-se de grandes empresas, com gestão profissional, em geral com bons balanços, sem grandes restrições financeiras ao investimento, cujos planos de investimento (muitas vezes plurianuais) são cuidadosamente estudados em função das oportunidades de mercado e muito pouco sensíveis a variáveis como a taxa de impostos sobre lucros.

Excluindo os grandes pagadores de impostos sobre os lucros, boa parte do nosso tecido empresarial é constituído por pequenas e médias empresas, muitas das quais não pagam impostos sobre lucros e que, consequentemente, não vão sentir qualquer benefício nem qualquer incentivo ao investimento.

Finalmente, posso deixar-vos o registo da minha experiência profissional de mais de quarenta anos de gestão empresarial a que os meus leitores darão o valor que bem entenderem. Tomei e ajudei a tomar dezenas de decisões de investimento, em empresas de vários setores e, nem uma única vez, a taxa de impostos sobre os lucros esteve em cima da mesa como uma variável decisiva para o caminho de investir ou não investir.

Acreditar que a redução dos impostos corporativos estimula o investimento e o crescimento económico é uma questão de fé, o que, no jargão anglo-saxónico, também se chama por vezes “voodoo economics”, por referência às práticas de magia populares sobretudo no Haiti e na Luisiana, ou seja, reduções de impostos que, a prazo, se pagam a si mesmas via estímulo ao crescimento.

A defesa das alterações à legislação laboral que foram propostas pelo atual governo, que estão a ser muito contestadas pelos sindicatos e que, porventura, levarão a uma greve geral, enferma claramente do mesmo tipo de pensamento mágico.

A lógica é mais ou menos esta: com maior “flexibilidade”, leia-se, com despedimentos mais fáceis e mais baratos as empresas sentem-se mais seguras para contratar uma vez que, caso as coisas corram mal, seja no plano económico, seja no plano da relação laboral, podem livrar-se do “fardo” sem grandes custos.

Também nos dizem que isso pode ser particularmente importante, numa época de crescente digitalização das economias, em que muitas das ideias interessantes existem em empresas em começo de vida, as famosas start-ups, para as quais a “flexibilidade” é ainda mais importante.

Tratando-se de iniciativas em que o capital decisivo muitas vezes não é constituído por instalações fabris ou equipamentos industriais pesados difíceis de transportar, mas antes por conhecimento que, no limite, viaja com o cérebro do promotor e uns quantos computadores portáteis, se não formos suficientemente acolhedores em matéria de flexibilidade laboral, essas start-ups vão com certeza migrar para paragens mais hospitaleiras.

Claro que acreditar que despedimentos mais fáceis aumentam o nível de emprego já é, em si mesma, uma questão de crença. Mas, ainda pior, vender a ideia de que com “flexibilidade” laboral vamos transformar o vale de Oeiras no Silicon Vale da Europa, é equivalente a vender banha da cobra para curar reumatismo!

A fonte do dinamismo vibrante de Silicon Vale não é uma qualquer flexibilidade do mercado laboral típica do capitalismo americano. O que faz daquele pedaço da Califórnia um verdadeiro berçário de estrelas não é a legislação laboral, nem sequer o enquadramento genericamente mais liberal da sociedade americana, é, outrossim, a abundância e, consequentemente, a concorrência, entre as mais variadas formas de capital de risco sempre á procura do que possa ser a próxima Google, Facebook, Amazon, etc.

O que torna aquela economia pujante são os investidores que conseguem levantar capital e que estão disponíveis para investir em dez empreendimentos, dos quais, é sabido, cinco vão á falência, três com sorte não darão perdas, mas dois, apenas dois, pagam generosamente todo o investimento.

Os que daquele ambiente reproduzirem a apenas flexibilidade laboral e não puderem contar com a flexibilidade que é verdadeiramente fundamental, ou seja, a do capital, com abundância e concorrência feroz de capital de risco, vão acabar com as mesmíssimas empresas que teriam de qualquer modo e com gestores corporativos, quiçá, a dormir um pouco melhor, num ambiente jurídico-laboral mais inclinado a favor das empresas.

Em Portugal, infelizmente, não há uma tradição de capital de risco e o tipo de instituições que lhe estão associadas são entre nós, de um modo geral, pequenas e com uma intervenção muito limitada na economia, pelo que, “flexibilizar” o mercado laboral, por si só nunca produziria grandes efeitos.

Mas há também uma questão moral. Este governo não colocou a reforma, pelo menos esta reforma do mercado laboral, no seu programa de governo. Esta reforma não foi a votos. É divisiva da sociedade e não consta que existisse algum clamor por parte das empresas para que fosse implementada.

A atual legislação laboral, com as alterações que foram introduzidas na altura da crise de dívida soberana, é equilibrada uma vez que os despedimentos por razões económicas foram grandemente simplificados embora, a meu ver prudentemente, se mantivesse alguma reserva em relação ao despedimento individual.

Na minha anterior incarnação de gestor corporativo encontrei muitos obstáculos na relação com o estado e as suas leis. Lembro-me de ter ficado exasperado com burocracia incompreensível, de ter gritado impropérios contra uma justiça lenta e inoperante, mas, com franqueza, não me lembro de alguma vez achar que a minha vida fosse um martírio por causa da legislação laboral.

 

Data de introdução: 2025-12-09



















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