Num tempo em que o debate público parece cada vez mais polarizado entre quem defende o crescimento económico a todo o custo e quem insiste na urgência de uma redistribuição justa, importa recentrar a discussão naquilo que está verdadeiramente em jogo: a persistência da pobreza e da desigualdade como falhas estruturais das nossas sociedades. O que ainda pode ser feito para resgatar a promessa de inclusão?
É comum ouvir o exemplo da relação entre a produção e a redistribuição de riqueza. Enquanto uns defendem que a redistribuição tem de ser promovida em cada momento, de acordo com as necessidades das pessoas, outros defendem que o crescimento da produção e a redistribuição se fazem em dois tempos: primeiro conseguindo crescer e, a seguir, melhorando a distribuição.
O modelo europeu de Estado-providência, que não é uno, tem uma característica estrutural comum: promover a redistribuição de rendimento de modo muito acentuado ao mesmo tempo que o crescimento económico, sob a forma de taxas de imposto progressivas, prestações sociais e serviços públicos. Muitos auguram o seu declínio e assiste-se a ofensivas contra todas as componentes que o caracterizam: ataques à progressividade fiscal, defesa da diminuição da generosidade das prestações sociais e desinteresse pelos serviços públicos.
No passado, nomeadamente depois da primeira grande crise petrolífera, o mesmo tipo de ataques, vindo então de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, foi parcialmente contido. Mas é incerto se o será na atual versão liberal-populista.
O que caracteriza o novo pensamento dominante é, neste ponto, a desvalorização da importância da desigualdade e o total menosprezo pelo fenómeno da pobreza. Concomitantemente, vê-se crescer mesmo a aversão aos pobres, a aporofobia, e assiste-se a que ela tenha efeitos, por exemplo, na degradação das prestações sociais de combate à pobreza. Parece mesmo haver apoio popular à contenção nas medidas de inclusão.
A pobreza, contudo, não é um fenómeno individual estranho à dinâmica social. As sociedades escolhem coletivamente o nível de pobreza que querem ter e o preço social que estão dispostas a pagar por isso.
A pobreza é um estado de privação de recursos e oportunidades. A desigualdade é uma irmã gémea da pobreza. Sempre que a desigualdade se agrava, são originados perdedores estruturais, que são aqueles para quem o acesso a menos recursos é o ponto de partida para um processo cumulativo em que essa dificuldade de acesso interage com o acesso a menos oportunidades, gerando resultados menores que eternizam e agravam as dificuldades de acesso a recursos. A exclusão social é o resultado do efeito cumulativo da pobreza e da desigualdade.
Como as nossas sociedades se baseiam na igualdade perante a lei, a desigualdade de estatuto que conduz à pobreza não resulta de uma diferença de estatuto jurídico, mas da diferença de desempenhos. Logo, se temos destinos diferentes, isso deve-se ao facto de termos tomado decisões erradas e devemos ser incentivados a corrigi-las e substituí-las pelas decisões corretas que nos levarão ao sucesso.
Nesta visão, a desigualdade de resultados sociais e, com ela, o risco de pobreza deriva de alguma forma de incompetência individual, que deve procurar-se corrigir. Essa incompetência pode, naturalmente, ser herdada e aí residiria a dimensão coletiva do risco de pobreza.
Assim vista, a desigualdade económica é o resultado de uma combinação de fatores individuais e coletivos. A que deriva de fatores coletivos pode ser corrigida pela criação de políticas de igualdade de oportunidades. A que deriva de fatores individuais, frequentemente associada à ideia de mérito ou falta dele, é uma fatalidade individual, no limite sem correção, que apenas pode ser abordada por uma rede de proteção social mínima, dedicada aos que “falham”.
Nenhum país do mundo erradicou a pobreza. Nenhuma economia do mundo é plenamente inclusiva. O fim da pobreza é ainda uma questão em aberto e exige uma tripla ativação.
A ativação do mercado, desde logo. O caminho que está a ser percorrido – e que propostas como as de Trump pretendem interromper – na aceitação do princípio de responsabilidade social das empresas, no reconhecimento de que têm deveres para com a comunidade e não apenas para com os acionistas, materializado hoje no crescimento das estratégias de sustentabilidade ambiental e social, merece acompanhamento e parece ter potencialidades.
A ativação dos cidadãos, combatendo as fronteiras que conduzem à exclusão social. Nesta frente, há sinais muitos sombrios no populismo europeu. A visibilidade e consideração dos grupos em risco de exclusão está a ser substituída por discursos de incompreensão, ressentimento e ódio. As comunidades são elementos poderosos de prevenção da exclusão, agindo para tornar os cidadãos mais próximos, fraternos e solidários. Este é um elo da cadeia da inclusão que não pode ser desvalorizado nem interrompido.
Finalmente, a ativação das políticas públicas é indispensável para garantir a cidadania social, o acesso em condições de equidade aos recursos e oportunidades. Tem-se assistido a um recuo das políticas sociais, mas, como defendia Richard Titmuss, os estruturalmente desfavorecidos têm de beneficiar de políticas de compensação. Os que pensam que as políticas de investimento social apagam a necessidade das políticas de compensação estão equivocados. Os mecanismos de exclusão permanecem mais fortes do que o que se consegue contrariar com o investimento na criação de igualdade de oportunidades.
Só este trio pode vencer a pobreza. A batalha não está inevitavelmente perdida nem antecipadamente ganha. Não há determinismo, só escolhas de modelo de sociedade.
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