JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

A inflação – O monstro mostra as garras

Como de costume, a política, o comentário no espaço público e a generalidade da comunicação social chegaram tarde ao problema. De repente, todos falam da inflação…

Pela minha parte, enviei para publicação neste espaço, faz agora justamente um ano, uma crónica com o título “quem tem medo da inflação?”.

O que estamos a ver agora já era mais ou menos notório há pelo menos um ano. A guerra na Ucrânia, as sanções económicas, a carestia das matérias primas energéticas e alimentares apenas aceleraram um processo que já vinha dos últimos quatro, cinco trimestres.

Nesta crónica não me vou preocupar com a atualidade ou com as perspetivas futuras do processo inflacionário – sobre isso já há muito quem fale - vou antes ocupar-me de ideias gerais que julgo podem ser úteis para a compreensão do fenómeno.

Tenho com este tema uma preocupação particular. O último surto inflacionista sério ocorreu nos anos 70/80 do século passado e foi controlado ao longo da década de 80. Só as pessoas com idade próxima dos 70 têm a experiência do que foi um ciclo inflacionista autoalimentado e do sofrimento que foi necessário para o controlar.

O que gostaria de aqui deixar claro, sobretudo para os que não têm experiência direta do monstro, é que a inflação, quando se torna endémica, é um mal terrível, um monstro que corrói a coesão social, que prejudica os que têm menos voz e poder e que deve ser combatido pelas políticas públicas.

Podemos definir inflação como uma alta generalizada dos preços.

Assim definida a inflação poderia não ser um mal por aí além. Imaginemos uma situação em que os preços sobem, de uma forma mais ou menos homogénea, digamos 5% e os salários e as pensões sobem igualmente cerca de 5%. Podemos dizer que ficamos todos numa situação de indiferença, o poder aquisitivo é razoavelmente constante e a distribuição social mais ou menos fixa.

Infelizmente os processos inflacionários reais estão longe da versão benigna acima descrita.

Desde logo a subida dos preços até pode ser generalizada, contudo nunca é homogénea. O poder na formação dos preços varia muito com os setores de atividade, com grau de monopolização das indústrias, com os níveis de regulação, etc. Ou seja, logo aqui há ganhadores e perdedores.

Depois é tudo menos garantido que os salários acompanhem a inflação. Em teoria até podíamos pensar num esquema automático, consignado nas leis públicas, de ajustamento dos salários à inflação: em teoria seria um exercício neutro e defendia os trabalhadores.

Não posso garantir que seja uma boa ideia. No ciclo inflacionista dos anos 70 do século passado muitos países optaram por esquemas similares, por exemplo, Itália com a famosa “scala mobile”.

Os resultados foram desastrosos e ainda hoje Itália está a pagar os custos.

O problema é que combater os efeitos injustos da inflação com aumentos de salários (ou pensões) é como tentar apagar um fogo com gasolina. Maiores salários nominais implicam mais custos, que implicam mais preços que, por sua vez, implicam mais salários que, por sua vez, implicam mais…

É fácil ver o ciclo infernal…

Finalmente há um preço especial que temos de ter em conta – a taxa de juro.

Em teoria as taxas de juro nominais sobem quando a inflação sobe. Numa economia saudável as taxas de juro reais, ou seja, as taxas de juro nominais deduzidas da inflação, devem ser ligeiramente positivas.

Quando isso não acontece o dinheiro perde poder aquisitivo. Se tenho hoje mil euros que rendem, digamos 2%, mas os preços sobem 5%, ao fim de um ano a quantidade de bens e serviços que os mil euros podem comprar é menor que o que compram hoje.

Quando o dinheiro perde poder aquisitivo, quando as taxas de juro reais são negativas, tendemos a comprar hoje o que poderíamos comprar amanhã, o que é mais uma acha para a fogueira da inflação.

Igualmente importante é a questão dos balanços.

A inflação é um bónus para quem deve e um encargo para os que emprestam. Se empresto mil euros a um juro de 2%, recebo ao fim de um ano 1020 euros. Contudo, se os preços subiram 5%, precisaria de 1050 para ficar numa situação neutra, nem ganhar nem perder. De alguma forma estive a subsidiar o meu devedor.

Talvez a melhor forma de olharmos para a inflação e compreender as suas dinâmicas, seja como uma questão de poder e da forma como ele se distribui na sociedade, entre estado e privados, entre setores de atividade, empregadores e trabalhadores, entre pensionistas e trabalhadores no ativo, credores e devedores, etc.

A inflação não é inocente, é um processo terrível, justamente porque a distribuição de poder não é homogénea e, por isso, uma vez embebida nos processos sociais, a inflação tende a prejudicar os que têm menos poder.

Exemplos: os trabalhadores no ativo defendem-se melhor que os pensionistas. Os trabalhadores podem reivindicar, podem, no limite, fazer greve, os pensionistas não têm qualquer forma de se defender.

O estado ganha com a inflação porque é, em princípio, o maior devedor. Quem perde? Perdem os detentores de títulos com rendimento fixo, os aforradores que emprestaram ao estado e que vão receber capitais desvalorizados.

Poderíamos multiplicar os exemplos – a inflação deforma o tecido social, perturba a alocação de recursos, prejudica os mais fracos, em suma, é um mal terrível que deve ser combatido por públicas adequadas.

Mas o que são políticas públicas adequadas?

Depende da origem do impulso inflacionista.

Se acreditarmos, guerra na Ucrânia à parte, que o impulso inflacionista veio das deslocações e desfasamentos entre oferta e procura gerados pela pandemia, até poderíamos dizer que o melhor é não fazer nada. À medida que as restrições impostas pela pandemia forem sendo eliminadas, oferta e procura voltarão ao equilíbrio e não passa nada.

Esta foi a tese defendida por muitos economistas e, sobretudo, pelos bancos centrais até há um par de meses.

O argumento, simplificando, corria assim: devido à pandemia as pessoas querem comprar coisas que a economia não consegue produzir em quantidade suficiente (mercadorias físicas, nomeadamente) mas poderia produzir mais de coisas que as pessoas não querem ou não podem comprar (serviços nomeadamente – não podemos ir ao cinema, aos restaurantes, fazer férias em hotéis, temos medo de ir a hospitais, etc.).

Como isto é temporário não devemos preocupar-nos excessivamente – o que o tempo trouxe, o tempo levará!

A este grupo deram o nome de “equipa do transitório”.

Mas sempre houve uma equipa adversária que eu chamei a equipa dos nervosos.

A equipa dos nervosos dizia que até pode ser verdade que o impulso inflacionista vem das deslocações e desfasamentos de oferta e procura gerados pela crise sanitária e até pode ser verdade que ao fim de algum tempo esses fatores desvaneçam.

Só que, mesmo que tudo o que diz a equipa do transitório seja verdade, isso não significa que não estejamos perante um problema sério. Falta introduzir a variável tempo, depende do tempo que o ajustamento levar, depende do impacto nas expetativas, do comportamento dos que têm poder de formação de preços, etc.

O que para já está claro, segundo a evidência empírica disponível, é que a equipa do transitório estava errada.

Não, não estamos perante um impulso temporário que se vai desvanecer com o tempo à medida que os impactos da pandemia forem desaparecendo. O monstro instalou-se, veio para ficar!

E, sendo assim, que fazer? Fica para a próxima crónica.

 

Data de introdução: 2022-05-04



















editorial

O COMPROMISSO DE COOPERAÇÃO: SAÚDE

De acordo com o previsto no Compromisso de Cooperação para o Setor Social e Solidário, o Ministério da Saúde “garante que os profissionais de saúde dos agrupamentos de centros de saúde asseguram a...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Imigração e desenvolvimento
As migrações não são um fenómeno novo na história global, assim como na do nosso país, desde os seus primórdios. Nem sequer se trata de uma realidade...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Portugal está sem Estratégia para a Integração da Comunidade Cigana
No mês de junho Portugal foi visitado por uma delegação da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa, que se debruçou, sobre a...