Este País não é para Velhos

1 - Pessoa amiga contou-me há dias que, na sua aldeia, alguns idosos residentes em lugares mais inacessíveis se encontram há vários meses sem receber os vales de correio com a reforma.
Pelo que me foi dito, os carteiros do concelho receberam instruções precisas da chefe dos correios para não entregarem nas moradas respectivas a correspondência que não contivesse o endereço completamente preenchido, com o nome da rua e o número de polícia, ornamentos com que a autarquia brindou os fregueses durante o ano passado.
Nesses casos, deveriam devolvê-los à procedência.
Assim, se os vales das pensões de reforma forem enviados pela Segurança Social para as moradas constantes dos seus ficheiros e tais moradas forem as que sempre foram - Lugar do Souto; Largo da Feira; Corredoura; Vessada; Ribeira; Crasto, Carvalhal, Carreira …, enfim, esses lugares cujo nome se repete em quase todas as nossas aldeias -, as cartas não serão entregues e serão devolvidas.
Basta não ter o nome da rua e o número da porta escrito no sobrescrito.
Tanto dá que o carteiro conheça, pelo nome, todos os habitantes desses lugares e saiba exactamente onde cada um mora.
Não pode entregar as cartas, sob pena de processo.

2 - Foi quando soube deste episódio que se me fez luz sobre uma situação de que dei conta no ano passado, na minha própria aldeia.
Subitamente, também aí todos os caminhos e vielas apareceram com placas contendo um nome, novo, de uma rua, onde antes não havia nome nenhum.
Foi tal o fervor que até os caminhos particulares os autarcas respectivos baptizaram. E puseram a respectiva placa.
O caminho de servidão por que acedo à minha casa, e que tem dono, chama-se há um ano Rua de Sub-Carreira.
Já não me bastava terem-me acabado com a aldeia, promovida a vila durante o esplendor do cavaquismo, numa ideia parola de progresso.
Agora tenho direito a uma imitação, em estilo rústico, do Porto onde vivo – com rua e placa à porta.

Pelo que percebi, o afã toponímico afinal não fora ideia solitária dos autarcas da minha freguesia – mas foi febre que correu muitas zonas do País.
Foi também isso que ocorreu na aldeia de quem me contou o episódio.
Explicou-me há dias um presidente de Câmara que se trata, com efeito, de uma medida generalizada em muitas – não sei se todas – autarquias e que decorre de pressões efectuadas pelos CCT para simplificar não sei que procedimentos internos dessa companhia majestática.
(Embora, pela obediência rápida aos interesses dos CTT, me palpite que os autarcas vão aproveitar o facto de os campos agora darem para ruas para lhes aumentar o valor patrimonial e a colecta do IMI.)

3 - A medida é um disparate acabado.
Nas aldeias, onde não havia ruas, praticamente todas as pessoas passaram a ter uma identificação de residência diferente da que tinham.
Os habitantes, sejam novos ou velhos – tratando-se das aldeias, mais velhos do que novos -, terão de percorrer a via sacra das repartições - Finanças, EDP, Águas e Saneamento, Segurança Social, Centro de Saúde, cooperativa agrícola -, com o papelinho da nova morada na mão, a fim de alterarem a residência e de poderem receber a correspondência permitida pelo zelo censório de chefes de repartição como a do exemplo com que comecei a crónica.
(Na verdade, mais uma peregrinatio ad loca infecta do que uma via sacra. Principalmente se os habitantes em causa forem, além de velhos, trôpegos; além de doentes, desalentados; além de acamados, sós).
Se não cumprirem o roteiro, não recebem a pensão, nem os avisos fiscais ou judiciais, nem pagarão as contas da luz ou da água.
E, quando forem penhorados pelo fisco ou pelos tubarões, como agora sucede sem quaisquer garantias, suspeito de que os cobradores hão-de dar com o sítio para a hasta pública, mesmo que a morada não tenha sido actualizada.
É aqui que entra o episódio das pensões de reforma – para mostrar a desumanidade que tantas vezes acompanha o voluntarismo de quem quer “modernizar” o país e as pessoas de acordo com as manias que tem no lugar das ideias.

4 - Mas há na história outra coisa que inquieta.
Nas aldeias, em regra, não há ruas, nem o anonimato do número de polícia nas casas.
Há lugares, onde os poucos que persistem em morar no interior se conhecem todos uns aos outros.
O que espanta é que seja possível que uns iluminados, depois de terem promovido o despovoamento da província à conta de uma centralização que não pára de crescer, queiram agora transplantar para esse território abandonado os modelos urbanos que unicamente conhecem.
E espanta mais ainda que os deixem fazê-lo.
Faz falta, para dar voz a uma justa revolta colectiva, o Provedor de Justiça.
Mas qual?

*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2009-04-04



















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