Chamem a polícia

O homem entrou no bar-restaurante por volta das dez da noite de sexta-feira. Sentou-se ao balcão e, enquanto escolhia a refeição por entre a abundância do cardápio que o empregado lhe entregou, pediu uma garrafa de água fresca. Exibia no rosto um sorriso de quem estava bem na vida. O bar-restaurante compunha-se de uma clientela ruidosa.
Escolheu marisco, depois um bife suculento, regado com o vinho de uma garrafa de preço elevado e encetou com deleite indisfarçado um jantar em que parecia estar a comemorar alguma coisa. Nos lugares contíguos não havia ninguém. Do lado direito, a dois bancos de distância, um casal dava a impressão de dirimir questiúnculas familiares.

Não era costume frequentar aquele local na zona histórica da cidade, mas o aspecto exterior agradável foi determinante para decidir entrar. Estava longe de imaginar que o segurança que lhe franqueou a porta tinha à cintura, escondida pelo casaco, uma arma de calibre proibido. Era um dos elementos de um grupo organizado da noite que a imprensa costumava designar por “gang dos porteiros”, alegadamente responsável pelos últimos quatro homicídios à porta de estabelecimentos de diversão nocturna.
Também não fazia a mínima ideia de que o dono do restaurante era um conhecido mafioso, relacionado com o tráfico de influências no futebol e cadastrado por promover sessões de jogo ilícito na cave do edifício. De resto, por aquela hora, deviam estar a baralhar as cartas para mais uma noite de vício. Na clientela, havia mais três indiciados de burlas fiscais e dois por falsificação de documentos. Um dos empregados era proxeneta. A mulher da limpeza, que varria atabalhoadamente o chão da desarrumada cozinha, vendia rifas aos frequentadores mais assíduos e o chefe de cozinha tinha uma aversão à lavagem frequente de mãos por considerar que o desgaste podia reflectir-se ao sopesar as doses nos temperos.

O homem disfrutava inocentemente o repasto. Pediu a sobremesa, um whisky velho em balão e um café. A seguir um gesto mecânico retirou o maço de cigarros do bolso e o isqueiro reagiu de chama em riste. Uma baforada de satisfação levitou na luz amarela, dispersou e desapareceu no ruído de fundo do restaurante.
Foi o aroma que o denunciou ao casal que estava sentado ao balcão. De pronto, a mãe de família esbracejou para o empregado-proxeneta, exigindo o apagamento da tocha criminosa. O homem respondeu a ambos com um sorriso de Gioconda e continuou a fumar.

O empregado, que conhecia bem a nova lei do tabaco, desceu a correr as escadas e arrancou o patrão do topo da mesa do vício fazendo desmoronar-se o monte de moedas encarrapitadas no maço de notas. A situação era grave: um cliente estava a fumar ao balcão. O proprietário tinha o número da esquadra gravado no telemóvel e mandou chamar o chefe. Com palavras, palavrões e muitos gestos explicou que um prevaricador estava a espalhar o fumo de um cigarro pela sala de jantar e recusava-se a cumprir a lei que entrara em vigor há uma semana.

Quando os dois agentes da polícia entraram, provocando um pânico contido no segurança ilegalmente armado, no próprio empregado de balcão, nos cinco clientes arguidos e na mulher de limpeza candongueira, no bar-restaurante o homem já era o centro das atenções e das conversas. O cigarro estava praticamente condenado à situação de prisca.
Sem delongas os agentes pediram a identificação e leram a parte da nova lei do tabaco que falava de coimas. 150 euros foi a sentença. O homem de sorriso misterioso teve que apagar a prova do crime para meter a mão na carteira de onde tirou as notas com que pagou prontamente a multa. Com ar de heróis, os agentes retiraram-se perante a plateia sussurrante.

O transgressor deixou uma gorda gorjeta por cima do papel da conta do jantar e saiu armado com o mesmo sorriso de sempre. Acabara de comemorar o facto de ter acertado, sozinho, nos números do Euromilhões…


 

Data de introdução: 2008-01-06



















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