NOOR’FATIMA VOLUNTARIADO, LISBOA

O nosso trabalho nas ruas é um movimento de amor

Aos 15 anos, em peregrinação a Meca, como todos os muçulmanos devem fazer, pelo menos, uma vez na vida, Nurjaha Tarmahomed sentiu a mistura que o mundo é, onde brancos, negros, asiáticos e demais cores de pele podem coexistir em harmonia. “Tem que haver é respeito”, afirma, acrescentando: “Eu não vejo o mundo como uma competição, mas de mãos dadas”. Por isso, criou a Noor’Fatima Voluntariado – Projetonur Associação, levando comida, roupa e outros produtos aos mais desfavorecidos.
Nurjaha Tarmahomed é uma portuguesa nascida em Moçambique, onde viveu os primeiros anos de vida. Já em Portugal, depois de uma vida empresarial de sucesso, deixou tudo e dedicou-se a ajudar quem mais precisa.
O momento de viragem foi a morte da mãe.
“A associação nasceu, verdadeiramente, quando a minha mãe faleceu há seis anos. Senti que o meu chão tinha ido a baixo, consciencializei-me que não tinha vindo para esta vida só para vestir bem, ganhar bem, estar em bons hotéis e em bons restaurantes, mas que tinha que dar algum contributo, tinha que me sentir válida para ter vindo a esta vida”, afirma, acrescentando: “E também por agradecimento a tudo o que Deus nos deu e pela boa vida que me tinha proporcionado”.
De fé islâmica, Nurjaha defende que, quando está em causa ajudar os que mais necessitam, “as religiões não são uma barreira”.
“Por isso, esta associação nasce da vontade de ajudar. Já desde criança que faço voluntariado. É uma chama que sempre existiu desde que nasci e, sempre que tive oportunidade, fui desenvolvendo-a”, conta, antes de relatar as experiências de voluntariado que fez após o falecimento da mãe e desligar-se dos negócios.
“Eu queria deixar-me estar um tempo comigo mesma. Então, inscrevi-me numa ONG e fui para Moçambique durante cinco semanas. Larguei aqui tudo, porque precisava de estar comigo e encontrar um novo sentido para a minha vida. E nessa ida para Moçambique, as primeiras semanas foram muito dolorosas”, conta, revelando: “Eu nasci em Moçambique, mas ali vi pobreza da qual nunca me tinha apercebido. Na minha realidade, os mais carenciados eram os nossos empregados, mas nós não ligávamos a isso! E na missão foi quando me apercebi de que havia crianças, órfãs de pais que morreram com a SIDA, que estavam entregues a uma instituição ligada à igreja, que eram demasiado obedientes. Para mim, as crianças têm que correr, saltar, falar… Eu questionava-me por que eram eles tão obedientes. A ideia que eles tinham era que, sendo assim muito bem-comportados ao nos receberem na missão, em troca, receberiam donativos. Não! As crianças devem comportar-se como crianças e não terem que se portar bem para receberem um pão”.
Estes choques com a realidade dos necessitados sucederam-se e foram criando uma, cada vez maior, convicção em Nurjaha: “Muitas das coisas que iam para lá como donativos eram vendidas, nem sequer lhes eram entregues. Senti choque em muitas situações, que provocaram confrontos interiores e que me reacendeu a chama da solidariedade. Então decidi que tinha que encontrar uma forma de ajudar quem mais precisa”.
Quando regressou e estava prestes a embarcar noutra missão, agora para o Camboja, uma doença da filha impede a viagem.
“Então, o que é que faço agora?”, perguntou-se.
Encetou aí uma busca por Lisboa onde pudesse fazer voluntariado.
“E há um dia em que vi uma igreja evangélica a dar sopa na rua e fui perguntar se me podia associar a eles. Eles aceitaram e logo na primeira noite, em que levei 100 sopas e 100 sandes, apercebo-me da grande quantidade de carenciados que há. Vi que havia muita fome e que eles comiam à nossa frente. Isso chocou-me”, recorda, confessando: “E já no conforto da minha casa, as lágrimas não paravam de me escorrer pela cara abaixo. Então, pedi a Deus que me orientasse para eu ver o que podia fazer por aquelas pessoas e ajudá-las. Adormeci com essa dor. De manhã, mostrei no Facebook a realidade que tinha encontrado na noite anterior e diversas amigas comentaram que também gostariam de fazer voluntariado, perguntando como podiam fazer”.
E através dessa ferramenta do século XXI, está lançada a semente do que viria a ser a Associação Noor’Fatima, cujo nome, em homenagem à mãe, significa «Luz de Fátima».
“Então, ali no Facebook, combinámos cada uma trazer 100 coisas e assim quase fazíamos um banquete. Começámos a ir para a rua distribuir, sempre à quinta-feira, junto à tal igreja evangélica. Só que o meu grupo aumentou tanto que passou a «persona non grata» ali e quase nos convidaram a ir embora”, lamenta.
É nesse momento que decide colocar as suas “competências empresariais ao serviço dos outros”.
Inicialmente o grupo continuou a ir para a rua às quintas-feiras, “mas com a criação da associação abriram-se algumas portas, pois tanto a restauração, como os têxteis dão às associações, porque passam recibo”, argumenta.
O sucesso da iniciativa foi tal que não parava de crescer o número de pessoas que queriam ir à rua e ajudar.
“Foi nessa altura que passámos a ir à rua, não só às quintas, mas também às sextas, depois aos sábados e agora já vamos todos os dias. Na primeira semana completa que fizemos, no final fizemos um jantar com todos os voluntários para que se conhecessem, pois eles não se conheciam por irem para a rua em dias diferentes. E passámos a ir para a rua todos os dias, porque as pessoas comem todos os dias, não comem apenas à quinta-feira”, lembra, relevando o facto de, “apesar de não ter ajudas do Estado, até ao momento não tenho sentido falta de doações”.
Desde o nascimento da Noor’Fatima Voluntariado, Nurjaha Tarmohamed tinha o sonho de abrir “um local onde aquelas pessoas pudessem comer à mesa e à hora das refeições”.
E no dia 2 de setembro esse sonho concretizou-se com a abertura da Cantina Social Noor’Fatima, em Alfornelos.
Apesar desta nova resposta, “não deixa de haver carrinhas na rua, porque há pessoas que não querem deslocar-se a um qualquer lugar para comer”, assegura e conta: “No entanto, há algum tempo que comecei a educá-los no sentido de que quando tivesse um espaço os conseguir levar até lá, onde teriam outras condições, continuando a ter o jantar e a levar o kit para o almoço do dia seguinte”.
“Nova era, novo espaço, novo ensinamento”, afirma, frisando que até aqui andaram e andarão pelo “Saldanha, Almirante Reis, Arroios, Martim Moniz e há outro grupo junto a Santa Apolónia”, reunindo-se os diversos grupos no Rossio.
“Comecei a aperceber-me que, por exemplo, quando chegávamos ao Rossio, por volta das 10 da noite, os sem-abrigo estavam muito agitados, porque estão esfomeados. Por vezes, os voluntários queixavam-se que os sem-abrigo da Baixa eram muito ingratos e agressivos, mas eu dizia-lhes que tinham que compreender o que é a fome. Uma pessoa com fome não tem as melhores reações”, sustenta.
A ação da Noor’Fatima começou por apoiar os sem-abrigo, mas começou a crescer.
“Para além da comida, apercebi-me que as pessoas necessitam muito de produtos de higiene e passámos a distribuir também. Com a chegada do inverno via que os cobertores, passado pouco tempo, já não estão em condições. Então, começámos a arranjar cobertores, luvas, meias, gorros e eles próprios, quando ainda têm, dizem que não precisam”, conta, relatando como canalizou os excedentes: “Chegou mesmo uma altura em que os donativos da restauração eram tantos que já nem sabíamos o que fazer a tanta comida. Quando fazia a recolha das 23h00, ficava com o carro cheio e não tinha destino para ela. Então, comecei a distribuir nas igrejas e nas mesquitas e sempre com grande adesão da restauração. Hoje, distribuímos cabazes por 45 famílias carenciadas. Felizmente, os donativos são crescentes, da restauração e até dos hotéis, e só é possível estar sempre disponível para tratar de os angariar e ir buscar, porque passei a dedicar a minha vida a isto, porque os voluntários têm a sua vida profissional e só vêm à noite para ajudar na distribuição”.
Todos os dias, com início às 20h00 e final às 00h00, exceto um grupo à segunda-feira que acaba à 1h00, cerca de 100 voluntários, distribuídos por várias equipas, cada uma dirigida por um coordenador, com postos de apoio (Odivelas, Baixa e outros) onde os voluntários, caso necessitem de algo mais do que angariaram na recolha na restauração, podem ir buscar para dar aos que deles precisam.
Apesar da associação ter inspiração islâmica, “toda a gente pode entrar para voluntário e toda a gente pode receber o que distribuímos, independentemente da crença que tenha”, defende, sublinhando: “Este impulso não teve nada que ver com religião, até a minha própria comunidade só soube o que eu andava a fazer muito mais tarde”.
De referir que, através do Zakat (tributo religioso e o terceiro dos cinco pilares do Islão), os muçulmanos devem ajudar, com uma percentagem dos seus ganhos, outros muçulmanos.
“Porém, se a minha vida foi toda vivida com muçulmanos, mas também católicos e outros, porquê só ajudar os muçulmanos? Sempre tive uma visão mais alargada, até porque os meus filhos também andaram na escola com pessoas que não são muçulmanas… Eu cumpro com os cinco pilares da minha religião, mas sempre quis ir mais além. Não sabia como a minha comunidade e até a minha família iriam reagir, mas estava a seguir o meu coração e a minha vontade”, conta, explicando: “Isso foi compreendido, até pelos líderes da comunidade, que me disseram estar a fazer um bom trabalho, levando, de certa forma, a religião muçulmana à rua numa altura em que as pessoas pensam que os muçulmanos são todos jihadistas”.
O lema da Noor’Fatima passa por distribuir sorrisos, abraços e uma palavra amiga, o que, “muitas vezes, é mais importante do que o dinheiro”.
Nesse sentido quis, desde início, moldar os voluntários à sua imagem e “fazê-los sentir que isto é um movimento de amor, não é apenas para por fotos no Facebook”, sustenta.
Quanto ao futuro: “Vejo um espaço enorme, com uma cozinha, uma mesa grande onde as pessoas possam comer, um espaço com roupas e onde poderá entrar quem quiser entrar, sem restrições”.
O sonho de Nurjaha Tarmohamed é poder continuar a ajudar os desvalidos da vida, criando cada vez melhores condições para os acolher e não apenas ir ao seu encontro nas ruas. "Insh’Allah" (Se Deus quiser)!

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2019-09-11



















editorial

NOVO CICLO E SECTOR SOCIAL SOLIDÁRIO

Pode não ser perfeito, mas nunca se encontrou nem certamente se encontrará melhor sistema do que aquele que dá a todas as cidadãs e a todos os cidadãos a oportunidade de se pronunciarem sobre o que querem para o seu próprio país e...

Não há inqueritos válidos.

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Em que estamos a falhar?
Evito fazer análise política nesta coluna, que entendo ser um espaço desenhado para a discussão de políticas públicas. Mas não há como contornar o...

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Criação de trabalho digno: um grande desafio à próxima legislatura
Enquanto escrevo este texto, está a decorrer o ato eleitoral. Como é óbvio, não sei qual o partido vencedor, nem quem assumirá o governo da nação e os...