JOSÉ FIGUEIREDO

Pode o Capitalismo ser um agente moral?

Pode o capitalismo ser um agente moral?
Talvez não devamos esperar demasiado neste particular.
Adam Smith, o fundador da economia enquanto filosofia autónoma, dizia-nos que “não é da benevolência do talhante, do cervejeiro, ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas do cuidado pelo seu interesse próprio.”
As corporações capitalistas, em princípio, existem para extrair riqueza, criar empregos e remunerar os acionistas, não para pregar moral ou fazer política.
Contudo, por mais que o capitalismo queira apresentar-se como moralmente neutro, os julgamentos morais são inescapáveis. Como tentei demonstrar em textos anteriores, a suposta neutralidade moral dos mercados é uma fábula.
Acontecimentos recentes na América de Trump vieram, de novo, colocar o problema no espaço público e mostrar que, por mais neutrais que as corporações capitalistas queiram ser (e parecer), lá chega o dia em que é necessário tomar partido.
Donald Trump juntou à sua volta um conjunto de CEO de conhecidas companhias americanas na qualidade de conselheiros. Basicamente foram criados dois fóruns, um deles mais virado para questões de política estratégica e outro mais focado em iniciativas industriais. Havia ainda o projeto de criar mais um fórum empresarial para aconselhar o Presidente em matérias relacionadas com o plano de investimento em infraestruturas.
O simples facto de algumas figuras públicas terem aceite pertencer a fóruns de aconselhamento de um personagem como Donald Trump não deixou de colocar umas quantas questões quanto à solidez moral dos participantes. Particularmente estranha era a posição de Elon Musk o conhecido promotor da Tesla. A Tesla é um fabricante de automóveis elétricos e de soluções de produção e armazenamento de energia solar e, no mínimo, seria estranha a proximidade do seu CEO (e maior acionista) de um Presidente que ameaçava abandonar o acordo de Paris sobre alterações climáticas.
Elon Musk e outros defendiam que a proximidade do Presidente era importante, justamente para evitar que a agenda política populista do Presidente descambasse em políticas económicas desadequadas ou, se quisermos usar uma linguagem mais popular, para “minimizar os estragos”.
Excluindo os casos de abandonos por razões circunstanciais, por exemplo, conselheiros que foram substituídos nos cargos que exerciam nas empresas, apenas dois resignaram depois da denúncia dos acordos de Paris por Donald Trump: Elon Musk da Tesla e Bob Iger da Walt Disney.
Os restantes continuaram a defender a presença nos respetivos fóruns argumentando de novo que, para as empresas que representam e para a comunidade, continuava a ser relevante a possibilidade de aconselhar o Presidente e, em particular, um Presidente como Donald Trump.
E assim andaram as coisas até aos recentes acontecimentos de Charlottesville. Donald Trump não só reagiu tardiamente à violência dos extremistas de direita como, quando teve de o fazer, foi incapaz de distinguir moralmente os dois lados.
Para alguns o ar começou a ficar irrespirável. De imediato demitiram-se Brian Krzanich da Intel, Kevin Plank da Under Armour e Kenneth Frazier da Merck. Para os que ainda hesitaram a situação começou a ficar insustentável. Donald Trump, entretanto, receando uma debacle total, decidiu desmobilizar os conselhos empresariais antecipando-se a uma humilhante resignação em massa que se sabia estar em preparação. Quanto ao fórum empresarial para as infraestruturas públicas foi desmobilizado ainda antes de estar constituído.
Contudo, não devemos ter ilusões. Embora se trate de decisões pessoais (pelo menos em parte) -  e das motivações íntimas não podemos obviamente saber -, provavelmente, nem tudo o que motivou os CEO a abandonar Trump resulta necessariamente de julgamentos morais.
Na verdade, é preciso alguma coragem para se colocar ao abrigo da fúria de um tresloucado como Donald Trump - um Presidente dos Estados Unidos pode fazer muito mal a uma empresa!
Quer o diga Kenneth Frazier - o único a ser pessoalmente visado com a fúria de Trump e, curiosamente, o único negro do grupo dos demissionários – que, depois da resignação, viu a sua empresa e ele próprio visados em comentários impróprios de um carroceiro. Provavelmente foi o receio de represálias que manteve uns quantos CEO na defensiva.
Mas, mesmo os que tiveram a coragem de renunciar aos cargos, podem ter tido motivações exteriores a opções morais.
Na verdade, expor-se à fúria de Trump é perigoso, mas pode ser ainda mais perigoso ficar colado a uma Presidência divisionista. As empresas têm trabalhadores e têm clientes e, estes, a acreditar nas sondagens estão maioritariamente contra Donald Trump. A maioria dos americanos e dos não americanos rejeita o racismo e a xenofobia e tem dificuldade em conviver com instituições que nessa matéria não tracem linhas vermelhas claras e distintas. Também é assim para as corporações capitalistas. Alienar trabalhadores e clientes pode não ser boa ideia e tenho dificuldade em admitir que este cálculo não tenha estado (também) presente na decisão dos CEO, quer nos que tiveram a coragem de se demitir quer nos que supostamente preparavam a resignação em massa.
É compreensível a relutância para a intervenção cívica dos líderes corporativos, enquanto tais, em questões políticas fraturantes. Uma coca cola comprada por um supremacista branco acrescenta tanto dinheiro como outra comprada pelo militante da igualdade racial.
No entanto, quando estão em jogo valores fundamentais como a recusa da discriminação por raça, género ou religião não é aceitável o silêncio.
Por outro lado, convirá lembrar que o capitalismo já foi mais progressista e inclusivo do que é hoje. Houve um tempo em que exportar capitalismo equivalia a exportar a democracia liberal e os valores socialmente inclusivos. A seguir à segunda guerra mundial o mundo corporativo americano apoiou iniciativas progressistas como foram o Employment Act de 1946 ou o Plano Marshall de reconstrução da Europa.
E não se pense que se tratava apenas de cavalgar a onda da opinião pública dominante – pelo contrário, tratava-se, na altura, de questões controversas e que dividiam os americanos. Por esse tempo não bastava ser um grande empresário, era necessário ser-se também um cidadão exemplar.
As coisas mudaram com a revolução liberal dos anos 80. Aos poucos o capitalismo perdeu os valores progressistas e inclusivos que foram substituídos pelo moto “ganância é bom” de Ayn Rand, a conhecida libertária.
Mas também seria errado perder totalmente a esperança. Afinal, empresários como Howard Schultz da Starbucks, Jamie Dimon do JPMorgan, Arne Sorensen da Marriott e até Lloyd Blankfein da Goldman Sachs (aquela piada sobre a sombra do eclipse não ser a única, foi bem esgalhada) vieram a público defender que o capitalismo não pode tolerar a ofensa a valores fundamentais. Quando estes estão em causa há um lado para se estar, mesmo que à custa de uns quanto pontos a menos nos indicadores da bolsa!
Não nos iludamos, os dirigentes corporativos andarão sempre à procura de uns euros a mais. É esse o seu papel, o nosso é fazer com que esse objetivo esteja alinhado com os valores fundamentais de um mundo civilizado. Isso consegue-se com uma opinião pública forte e bem informada o que, por sua vez, implica um espaço mediático forte e independente. E será que o temos?

 

Data de introdução: 2017-09-09



















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