1 – Num domingo do passado mês de Julho, como é habitual, a família alargada - filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, primos - reuniu-se para o almoço semanal, na aldeia.
A casa dá para um pequeno bosque de carvalhos, que vai até ao rio, árvores à sombra das quais cada um deixou a sua viatura, numa espécie de parqueamento “ad hoc”.
Eram, se bem me lembro, 6 as viaturas estacionadas no local.
A certa altura, um dos presentes saiu da sala de jantar, deslocando-se para o exterior da casa – vindo de imediato alertar para o facto de uma das viaturas ali estacionadas se encontrar a arder.
Tratava-se do carro de um meu cunhado, de modelo híbrido, que, não obstante se encontrar desligado, entrara em combustão espontânea e pegara fogo.
(Parece que é frequente nestes modelos… Ouvi depois várias histórias sobre incidentes do mesmo tipo, relativos a veículos híbridos estacionados em garagens subterrâneas de prédios colectivos, que, entrando em combustão espontânea, pegaram fogo ao prédio todo…)
Voltando ao almoço dominical: estava a arder o carro e o incêndio já se propagara à erva seca rasteira do chão do carvalhal.
Vieram os bombeiros, que acabaram por apagar o incêndio – mas a viatura ficou completamente destruída, tendo a temperatura sido de molde a fundir o metal de grande parte dela.
O incêndio durou mais de meia hora, com os cerca de 20 familiares a respeitarem o distanciamento prudente das sucessivas explosões.
Pois bem: nenhum carvalho pegou fogo, apesar da intensidade das chamas e de o incêndio se desenvolver junto do pé das árvores.
Ainda hoje, dois meses depois, igualmente domingo - dia em que escrevo a crónica -, para a primeira reunião prandial após as férias, estive a vistoriar o local do incêndio: nenhuma árvore secou, todas mantendo a folhagem verde própria da espécie e o demais vigor vegetativo.
2 – Os incêndios, numa espécie de fatalidade anualmente renovada, fazem parte da história dos nossos Verões e do início do Outono, ocupando praticamente todo o noticiário televisivo durante esses períodos.
Este ano, não foi, não está a ser, diferente.
Se fôssemos capazes de aprender com os nossos próprios erros, as imagens que nos entram pela casa dentro deveriam servir-nos de escarmento para mudar essa fatalidade.
O que nos é oferecido pelas televisões não é só, nem principalmente, a coreografia do fogo, a percorrer montes e vales, a cercar povoações, a destruir património, a ameaçar as casas e as cortes de gado, as zonas industriais e as hortas e pomares, a saltar de concelho em concelho – tudo oferecido em visão panorâmica pelas televisões, numa exposição excessiva.
É muito mais do que isso: é a confrontação com a desgraça, o medo e o heroísmo de pessoas concretas, são as vidas que são roubadas a quem persiste em defender vidas e bens, seus e alheios – moradores, lavradores, bombeiros –, cenário de dor que nos chega em reportagens de funerais de quem foi imolado pelas chamas.
(Não defendo - Deus me livre! -, qualquer forma de censura à imprensa; mas um repórter que pergunta a uma vítima que acabou de ver a sua casa a arder, ou a sua vinha a ficar carbonizada, o que é que essa pessoa está a sentir, só para preencher de forma barata tempo de televisão, devia mudar de emprego.
Já agora: ninguém explicará aos senhores jornalistas que os incêndios não “se alastram”, uma vez que o verbo alastrar não se conjuga reflexamente. O incêndio “alastra”, não “se alastra” …)
Já em 2017, ano da maior desgraça quanto a vítimas mortais de incêndios no que levo de vida adulta, parte substancial do diagnóstico das causas da desgraça era consensual: trata-se de erros de décadas no que respeita ao planeamento e organização da área da floresta no nosso País.
Os pontos fracos estão todos identificados: e um deles é o da escolha das espécies a plantar nas explorações florestais.
A escolha das espécies tem privilegiado em regra a plantação de espécies estranhas ao património florestal autóctone, designadamente o pinheiro bravo e o eucalipto.
Não são espécies que a selecção natural tenha destinado ao nosso país.
As espécies autóctones são predominantemente o carvalho alvarinho e o negral, o sobreiro, o choupo, a faia, o amieiro, o castanheiro...
Mas o pinheiro e o eucalipto crescem mais depressa – e permitem, numa zona de minifúndio, como é o centro e o norte de Portugal, fazer acrescer aos escassos rendimentos da população rural do interior um pequeno suplemento proveniente da venda de pinhal e eucaliptal.
3 – Muitos dos meus leitores, designadamente os mais velhos, tinham como livro de leitura obrigatória no liceu “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós.
O romance trata da saída de Jacinto, o Príncipe da Grã-Ventura, do 202 dos Campos Elísios, em Paris, onde residia, para recolher à Tormes dos seus antepassados, em Santa Cruz do Douro, em Baião, sobranceiro ao Douro, para acompanhar a trasladação das ossadas de alguns desses antepassados – mas onde passou a residir de vez, trocando os luxos da civilização cosmopolita pela simplicidade da vida rural (embora, no caso, vida desafogada).
Nesse retorno à terra dos seus antepassados foi acompanhado por Zé Fernandes, que desempenha o papel de narrador do romance.
A certo passo da narrativa, Jacinto discorre sobre a sua ambição em transformar Tormes num lugar melhor para se viver - e da sua antevisão do que seria essa Tormes do futuro, com parques de árvores frondosas.
Mas Jacinto tem pressa e quer plantar espécies que lhe permitam assistir ainda ao crescimento dos exemplares escolhidos; e inquire Zé Fernandes, nos termos assim descritos no livro:
“No silêncio grave do crepúsculo, que descia, murmurou ainda: - Ó Zé Fernandes, quais são as árvores que crescem mais depressa? - Eh, meu Jacinto... A árvore que cresce mais depressa é o eucalipto, o feíssimo e ridículo eucalipto. Em seis anos, tens aí Tormes coberta de eucaliptos …”
Feiíssimo e ridículo, sem dúvida, e que a natureza não escolheu para Portugal, importado que foi da Austrália; mas escolha generalizada, a par do pinheiro bravo, para ocupação do solo florestal.
4 – A intensidade e os efeitos perniciosos dos incêndios ocorridos no que vai de 2025 tiveram a virtualidade de fazer intervir no espaço público diversos especialistas, não comprometidos com corporações ligadas aos negócios que giram à volta dos incêndios, mas com competência e sensatez para o diagnóstico dos erros e para a proposta de soluções.
Desses contributos retenho duas ou três ideias, que me parecem virtuosas e a que voltarei em próximas crónicas: a ideia de que a regionalização administrativa do território permitiria um muito mais eficaz e mais barato combate aos incêndios florestais, que em regra se propagam por vários municípios, com racionalização de meios e com uma gestão e capacidade de decisão mais próxima das comunidades locais; e a ideia da diversificação das espécies a plantar, criando manchas florestais de árvores de folha caduca, entremeando com zonas de arvoredo de folha persistente.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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