Numa das crónicas anteriores dávamos nota sobre uma anomalia que se seguiu ao infausto “liberation day”, ou dia da libertação, quando as famigeradas tarifas “recíprocas” foram anunciadas pela administração Trump.
A consequente turbulência nos mercados ocorreu de acordo com os manuais, com os investidores a procurarem abrigo em ativos seguros como ouro ou títulos do tesouro americano, no entanto, contrariamente ao que seria de esperar, o dólar perdeu valor. Na verdade, em tempos de confusão, o dólar costuma apreciar dado que é visto como um ativo de refúgio.
Eventualmente tratar-se-ia de uma anomalia passageira a corrigir em devido tempo.
Entretanto Donald Trump suspendeu as tarifas “recíprocas”, as bolsas recuperaram parte das perdas, contudo, nos mercados de dívida e nos câmbios vemos desenvolvimentos de alguma forma inesperados.
Depois de um primeiro momento em que os títulos do tesouro americano ganharam por efeito de refúgio, a verdade é que, no período subsequente ao “dia da libertação”, a tendência tem sido para a desvalorização dos títulos que é o mesmo que dizer que as taxas de juro têm subido. Desde 2 abril os juros dos títulos de dívida americanos a dez anos subiram de 4,16% para 4,42%. No entanto, mais uma vez contrariamente às regras dos manuais, o dólar, no mesmo período, perdeu 4,7% no confronto com um pacote das principais moedas internacionais.
Habitualmente não é assim. Quando as taxas de juro americanas estão relativamente elevadas o dólar tende a ganhar. Desde logo porque se pode fazer dinheiro tomando dívida em euros ou yens, com taxas de juro mais baixas e aplicar em dólares com taxas de juro mais altas encaixando a diferença. Por outro lado períodos de taxas de juro elevadas são também, de uma forma geral, períodos de crescimento económico o que puxa pela cotação das moedas.
Usando a linguagem do “economês” diríamos que desde o infame “dia da libertação” a correlação entre as taxas de juro e a cotação do dólar quebrou.
Obviamente não sabemos se se trata de um fenómeno transitório ou se, pelo contrário, temos aqui um primeiro sinal de uma mudança estrutural do papel do dólar no sistema financeiro internacional.
O dólar tem sido a moeda dominante desde a segunda guerra mundial substituindo-se à libra esterlina que teve o mesmo papel até à primeira guerra mundial.
Embora a criação do euro e o ascenso económico da China tenham naturalmente erodido o papel do dólar, a verdade é que, mesmo agora, mais de 60% dos ativos de reserva a nível global são denominados em dólares, contra cerca de 20% em euros e doses pouco mais que marginais de libras, yens ou renminbis. Do mesmo modo, o dólar continua esmagadoramente dominante nas transações e nos financiamentos internacionais.
Em parte o poder do dólar vem da dimensão da economia americana. Por volta de 1950 a economia dos Estados Unidos valia próximo de 50% da economia global. Mesmo agora, com a recuperação da economia europeia no pós-guerra, o crescimento notável do Japão e dos tigres asiáticos e o ascenso da China a potência económica global, a economia americana ainda vale mais de um quarto do PIB planetário.
Contudo a força do dólar não vinha exclusivamente da dimensão da economia.
O dólar todo poderoso devia muito à solidez das instituições democráticas americanas, ao primado da lei, ao estado de direito, à estrita proteção legal da propriedade privada, à independência dos tribunais ou à existência de instituições politicamente independentes como, por exemplo, a Reserva Federal, as quais garantem uma razoável previsibilidade das políticas uma vez que não estão sujeitas aos altos e baixos dos ciclos políticos e eleitorais.
Devido à dimensão da economia e ao enquadramento institucional particularmente favorável ao investimento privado, os mercados americanos, seja de ativos de risco seja de títulos de dívida, são os maiores, os mais profundos e os mais líquidos do mundo e, como tal, indispensáveis em qualquer estratégia de investimento. Por exemplo, um fundo de ações globais tem tipicamente próximo de 70% de empresas americanas na sua composição. Os títulos do tesouro dos Estados Unidos, dada a sua segurança e liquidez, são usados na estruturação de muitas operações de financiamento complexas no espaço global.
Amanhã não será a véspera do começo do fim do papel primordial do dólar no sistema financeiro internacional, quanto mais não seja porque não se vislumbram alternativas credíveis. O dólar continuará a ser a moeda dominante por muitos e bons anos.
No entanto, a atual administração americana tem feito tudo o que pode para descredibilizar o dólar e acelerar o processo em curso de progressiva redução da sua importância global.
Desde logo a solidez das instituições democráticas americanas está a ser posta à prova. Donald Trump governa como um tiranete para quem não há limites à ação executiva o que põe em causa um dos fundamentos da democracia liberal que é o primado da lei. Sabemos agora, embora muitos já o suspeitassem, que a declaração arbitrária de tarifas aduaneiras pelo ramo executivo é ilegal conforme uma recente decisão judicial.
A independência política de agências federais, que garantiam a continuidade e previsibilidade de políticas fundamentais, independentemente dos altos e baixos dos ciclos político-eleitorais, como, por exemplo, a política monetária através da Reserva Federal, está sistematicamente a ser posta em causa. Donald Trump chegou a admitir a possibilidade de demitir Jerome Powell de presidente da Reserva Federal, coisa que legalmente não pode fazer. Não foi a ilegalidade da coisa que fez recuar Donald Trump (para os populistas o estado de direito é um estorvo), foi antes uma tareia monumental dos mercados que levou o tiranete a pensar duas vezes.
Ao mesmo tempo a trajetória orçamental dos Estados Unidos está a assustar os detentores de ativos denominados em dólares. Passou recentemente na Câmara dos Representantes (por um voto), legislação fiscal proposta pela administração Trump que vai aumentar o já inflacionado deficit orçamental de 6,4% para 6,9% do PIB e aumentar a dívida pública em 3,3 triliões (milhões de milhões) na próxima década. Em quatro anos a dívida pública americana, comparada com o PIB, terá ultrapassado o pico que se seguiu à segunda guerra mundial e que se julgava irrepetível em tempos de paz.
Para juntar insulto à injúria chegou à atenção do público uma cláusula obscura na legislação fiscal que permite à administração taxar os detentores internacionais de ativos americanos.
Resumindo, se a intenção da administração americana fosse descredibilizar o dólar e assustar os investidores não teria sido fácil fazer melhor.
O dólar perdeu cerca de 5% desde o “dia da libertação”. É provável que alguns investidores mais nervosos estejam a substituir ativos denominado em dólares por ouro ou ativos denominados noutras moedas.
Para já é pouco mais que picadela de mosquito. Mas, como diz o povo” no comer e no ralhar tudo vai do começar”. Do que não devemos duvidar é que o atual curso das políticas norte americanas está a desbaratar os maiores ativos de que a América dispunha, instituições credíveis e uma moeda indispensável.
A legislação ainda tem que passar no Senado. Quem sabe os senadores sejam os últimos adultos na sala. Haja fé!
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