HENRIQUE RODRIGUES

Quem guarda o guardador?

1 - Na semana passada, a Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público deliberou instaurar um processo disciplinar à Procuradora Geral Adjunta, Maria José Fernandes, com vista a sancioná-la pelo teor de um artigo que publicou no jornal “Público”, por ocasião e no contexto da operação mediática que visou o Primeiro-Ministro, no âmbito do processo “Influencer” – assim designado pelos próprios agentes, à americana, tanto no nome como no espalhafato, copiado das séries de televisão.

(Este batismo dos processos com nomes retumbantes tem sido, aliás, uma constante das autoridades de investigação – “Tutti Fruti”, “Marquês” “Vortex”, “Influencer” e tantos outros -, mas não corresponde a qualquer um dos tipos de processos previstos no Código de Processo Penal; antes procura causar o impacto público esperado, o sucesso mediático, como se se pretendesse deslocar para os jornais e as televisões o acompanhamento dos processos e antecipar a condenação – sem contraditório, essa incomodidade para a investigação…, mas não deixando de exibir a vera efígie dos visados, presumidamente inocentes, para generalizado comprazimento do público e edificação dos povos.)

Votaram a favor da instauração do processo disciplinar sete membros da referida Comissão Disciplinar, todos eles magistrados do Ministério Público; e votaram contra três dos restantes membros da mesma Comissão, todos designados pelo Parlamento – e estranhos, portanto, à referida corporação.

Recordemos as afirmações mais contundentes da Procuradora visada, segundo o Expresso, de 11 de Janeiro, que teriam justificado a deliberação persecutória: “De acordo com… fonte judicial, o inspector do M.P. considera que a procuradora terá infringido os deveres de reserva, lealdade e correcção, por ter criticado o Ministério Público, num artigo de opinião, em que também chamou “primas donas” aos colegas do DCIAP, onde está a ser investigado o processo…”  (Influencer).   

Ainda citando o Expresso, de 11 do corrente, o inspector do M.P. que propôs a instauração de processo disciplinar fundamenta-se também nas opiniões da Procuradora Geral Adjunta, no citado artigo do Jornal “Público”, por esta ter questionado, em tom crítico, como “foi possível chegar até à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política… “ e ter ironizado que os “procuradores que não hesitam em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência” – tudo isto a propósito das buscas na Presidência do Conselho de Ministros.

 

2 – Não deve ter sido o teor das opiniões da Procuradora Geral Adjunta, pelo seu valor intrínseco, que justificou a decisão de instauração do processo disciplinar.

Se se fosse fazer um inquérito imparcial, decerto que a larga maioria dos inquiridos concordaria com a opinião de Maria José Fernandes sobre os pontos que esta criticou.

Foi, portanto, o facto de o ter dito, e ter criticado a corporação, e não o facto de serem falsas as observações, que deu causa à acusação disciplinar.

Aquando da publicação do artigo no “Público”, e no quadro da controvérsia que o mesmo suscitou, o Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público veio também a público criticar o facto de a Procuradora Geral Adjunta ter expressado publicamente críticas ao comportamento de alguns magistrados.

(Aí já ninguém veio condenar o Presidente do Sindicato, ou mover-lhe um inquérito, por, também ele, vir criticar publicamente outra magistrada.)

Nessa ocasião, como tivesse entrado nas adjacências do debate, a propósito da irresponsabilidade estatutária dos respectivos magistrados, a questão da composição do Conselho Superior do Ministério Público, o mesmo presidente do Sindicato não deixou de enfatizar a exigência da manutenção da maioria dos membros proveniente da própria corporação.

Tive aqui ocasião, no mês passado, de manifestar a minha discordância, opinando que seria mais saudável, e mais democrático, que o Conselho Superior tivesse uma maioria dos seus membros com legitimidade conferida por intermédio do voto dos cidadãos – indirectamente, mediante designação pelo Parlamento.

Ora, os resultados da votação são muito expressivos e vêm de encontro ao que defendi na crónica de Dezembro passado.

E dão razão à insistência de Rui Rio na sua luta de sempre para arejar a composição do Conselho Superior.

Votaram a favor do processo disciplinar os “da casa”; votaram contra os “de fora”.

Mas os primeiros tinham interesse directo na causa – pois que alguma das críticas da Procuradora Geral Adjunta visaram a corporação no seu todo.

Já os segundos não tinham nenhum interesse privado no assunto.

Há um ditado que diz que “ninguém pode ser juiz em causa própria”.

Ora, aí está!

 

3 – Tenho ouvido decisores políticos defender que, embora reconheçam que precisam de arranjo, como é o caso do Estatuto do Ministério Público, ou outras leis relativas à Organização Judiciária, as mesmas não devem se alteradas “a quente” – como seria o caso de mexer agora no Estatuto, em cima da investigação do processo “Influencer”.

Pareceria que as alterações visavam beneficiar os investigados no processo, ou castigar os Procuradores que se tinham “atrevido” a bulir com interesses dos poderosos.

Mas há dois argumentos que vão contra essa tradição de imobilismo legislativo:

Em primeiro lugar, se vão esperar que não esteja a decorrer qualquer processo relativo a dirigentes políticos, bem podem esperar sentados – já que praticamente as informações que são postas em público sobre processos com nomes sonantes não têm intervalo.

Em regra, com violação do segredo de justiça, e mesmo que não resultem em nada, como tantas vezes sucede, após decisão judicial.

(Às vezes, até pode parecer que alguns processos são abertos, não obstante a sua inconsequência, só para manter o interdito e não mexer na lei vigente, por esse argumento.)

A segunda razão é porque são mesmo as ineficiências e os excessos que evidenciam a necessidade das reformas das leis que apresentam ou permitem distorções no funcionamento da “inteira e sã justiça.”

E, se precisam de reforma ou de ajustamento, quanto mais cedo, melhor.

 

4 – Os partidos ainda não apresentaram os seus programas, salvo, se não me engano, o “Chega” – que o apresentou no passado fim de semana, na Convenção.

Não me recordo de ter ouvido ainda o novo Secretário-Geral do PS a defender a reforma da Justiça, dela bem carecida.

Mas já li declarações de notáveis socialistas explicitando sem rebuço que, na nova legislatura, após 10 de Março, é preciso “revisitar” – verbo agora muito usado – as leis estruturantes do sistema de Justiça. E também o Estatuto do Ministério Público.

Está à espera de decisão no Tribunal Constitucional um processo para decidir, em termos simplificados, se os magistrados do Ministério Públio devem cumprir as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos, ou se andam em roda livre.

O Estatuto não será inequívoco a esse respeito.

Mas o Governo não terá de esperar pela sentença.

Basta apresentar uma proposta de Lei, na próxima Assembleia da República, que torne claro o que estará cinzento.

E por aí adiante …

 

Data de introdução: 2024-01-16



















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