HENRIQUE RODRIGUES

À justiça o que é da justiça...

1 - Tem constituído tópico comum das crónicas que vou escrevendo no Solidariedade, com religiosa regularidade, desde há 20 anos, a intenção de comentar o imediato e o efémero, como é apanágio das crónicas publicadas na imprensa, procurando acompanhar os acontecimentos mais relevantes dos dias que correm, ou correram, no tempo que medeia entre uma crónica e a do mês seguinte.

E, como já aqui expliquei, há muitos anos, no início dessa colaboração, o olhar com que examino os factos que me servem de tema é o olhar de um homem do Norte, com os olhos do Norte, desconfiado da corte e adversário do centralismo, convencido de que boa parte do nosso atraso provém desse atávico vício de dependência do Terreiro do Paço, que já Garrett lapidarmente reduziu ao famoso dito de que “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”.

E se meses há em que, à míngua de assunto, a escrita é mais esforçada, para colher do nada algum tema ou alguma sugestão, outros meses há que em não bastariam as longas resmas de um romance para que nelas coubesse toda a diversidade que preenchera de forma mais atractiva o espaço público.

Neste segundo caso, relativamente ao que sucedeu ao longo de Novembro e da 1ª semana de Dezembro de 2024, o difícil é escolher:

Teríamos, em primeiro lugar, a demissão do Governo, a pedido do próprio Primeiro-Ministro, a pretexto de contra ele correr um inquérito criminal, promovido pelo Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, de par com os efeitos dessa demissão: a anunciada dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições legislativas antecipadas, bem como a demissão de António Costa de Secretário-Geral do PS, com eleição do sucessor à frente do Partido – a ocorrer dentro de dias.

Outro tema seria a insólita aparição de Cavaco Silva num Congresso do PSD – interrompendo uma tradição de 30 anos de ausência desse concílio partidário -, para apoiar Luís Montenegro no assalto a S. Bento (Assembleia da República e residência oficial do Primeiro-Ministro), na sequência de igualmente imprevisíveis e insólitas intervenções escritas, desvalorizando a política das “contas certas” de Centeno e Medina.

Finalmente – e para falar só de assuntos de primeiro plano -, teríamos a “novela” das gémeas luso-brasileiras, a quem teria sido dispensado um tratamento privilegiado por parte do SNS, com sugestões de favorecimento por intervenção do Presidente da República – o que tem originado a devassa da correspondência trocada entre o filho do Presidente da República e o seu pai, o Presidente, e a de ambos com os Gabinetes do Primeiro Ministro e outros membros do Governo; e que tem igualmente sido associada ao fim do chamado “estado de graça”, que tem sido o estado geral de Marcelo Rebelo de Sousa desde que foi eleito para o primeiro mandato.

(E que tem originado, noutro plano, uma inapropriada euforia comunicacional, com exposição em alguns canais de televisão de vídeos ou fotografias das referidas gémeas, sem qualquer filtro, violando o interdito deontológico que proíbe a divulgação da imagem e assegura a respectiva protecção, tendo em conta o superior interesse da criança, sob o parâmetro da reserva da vida privada das mesmas menores.)

 

2 – Escolho o primeiro tema – o da demissão de António Costa e da dissolução da Assembleia da República -, ficando-me a pena de não vasculhar igualmente os outros.

Mas, parafraseando Luís de Camões, “para tão longa ambição, tão curta a crónica.”

E escolho esse tema porque me parece o de efeitos mais extensos, e mais intensos, no panorama político nacional.

Em resumo, trata-se, se bem o percebi, de António Costa ter sido sugado para o interior de um processo de inquérito criminal, dirigido principalmente contra outros destinatários, embora próximos de si – se bem que ele próprio, ao contrário de outros, não tenha sido constituído arguido e a proximidade não seja crime.

Segundo o Ministério Público, a crer no que tem vindo a ser publicado, a investigação a António Costa visa saber se tem fundameno referências de terceiros ao facto de tais terceiros se proporem realizar diligências junto do Primeiro Ministro, no sentido de este facilitar diligências administrativas que viabilizassem a realização de um investimento avultado em Sines.

Não há, que se saiba, nenhum indício directo que envolva o Primeiro Ministro em qualquer diligência nesse sentido.

Nem que tenha tirado qualquer vantagem pessoal dessa suposta diligência.

E muitos autores interrogam-se se, mesmo que tais diligências tivessem ocorrido, nos termos sugeridos, estaríamos perante um crime; ou se, pelo contrário, a definição do interesse público no sentido de promover o investimento em causa não caberia no âmbito do poder administrativo – que compete ao Governo definir.

(A eventual concessão de benefícios fiscais para que a Auto-Europa ficasse em Portugal constituiria crime? Pelo menos, para o caso de não ter havido contrapartidas pessoais.)

Admito, sem ironia, que corresponda à verdade a afirmação da Procuradora Geral da República de que o comunicado da Procuradoria Geral, nomeadamente o famoso parágrafo, não seria de molde a justificar o pedido de demissão do Primeiro Ministro.

Mas percebo melhor a posição do Primeiro Ministro, designadamente se estiver de boa fé – como acredito -, de considera intolerável a mínima suspeita de contaminação do exercício do cargo por uma nem-sequer-acusação que considere injusta.

O “punctus saliens” não é esse; é o de saber se uma actuação eventualmente displicente de um qualquer Procurador da República pode causar o terramoto que causou, sem monitorização prévia por parte da hierarquia do M.P.

O voto dos cidadãos pode ser arredado por uma eventual incompetência de um procurador da República – se for esse o caso?

 

3 – Debate-se, mesmo no Tribunal Constitucional, qual o sentido material da organização hierárquica do Ministério Público.

Há quem entenda – e é o entendimento que tem prevalecido no seu seio, a partir de interpretação do Estatuto do Ministério Público - que cada magistrado do MP constitui, como escrevia o Pessoa, “o mundo inteiro a sós”, quer dizer, é titular exclusivo da acção em cada processo penal, sem possibilidade de intervenção casuística de qualquer superior hierárquico, mesmo para a correcção de erros de investigação ou de falhas de percepção cometidos pelo titular do processo.

Pelo contrário, há os que entendem que o MP constitui efectivamente uma magistratura hierarquizada, cabendo às instâncias superiores a possibilidade de formular directivas, ou orientações, aos subordinados – podendo até avocar processos distribuídos a estes.

Tal debate nada tem que ver com a desejável autonomia do MP, ou a sua independência do poder político.

Tais princípios tanto são (ou não são) respeitados numa perspetiva, como na outra.

Ao contrário da Magistratura Judicial, em que vigora o princípio do Juiz natural, na Magistratura do MP, tal princípio não tem aplicação.

Não há um procurador dono “ab initio” do processo, como na judicatura.

Um Procurador da República não é um juiz.

Integrando embora a estrutura dos Tribunais, não integra o poder judicial.

O MP não é um órgão de soberania.

Por aqui já nos vamos aproximando do entendimento de que a organização hierárquica do MP não constitui uma entorse ao princípio da separação dos poderes, estruturante do estado de direito democrático.

A separação de poderes inibe o poder politico de interferir no exercício do poder judicial.

Tal princípio tem tido tradução entre nós na fórmula de António Costa, “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça!”        

Tal fórmula está certa; mas não se aplica ao nosso caso.

 

4 – Um dos principais erros de António Costa foi não ter prosseguido a aproximação querida por Rui Rio, para entendimento quanto, quer à regionalização, quer à reforma da Justiça – e, nesta, como medida emblemática, pela alteração da composição do Conselho Superior do Ministério Público, no sentido de assegurar uma maioria de conselheiros externos ao Ministério Público.

António Costa desistiu de ambas as reformas, num caso, para não afrontar Marcelo Rebelo de Sousa; noutro, para não irritar a corporação do MP.

Saíram-lhe goradas ambas as contas.

O tacticismo nem sempre compensa.

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2023-12-12



















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