HENRIQUE RODRIGUES

Sociedade intergeracional (?)

1 - Como acontece sempre que as televisões tratam do tema das pensões de reforma, como tem acontecido, a condição de reformado, nas imagens que ilustram o tema, é representada por um grupo de velhos, a jogar cartas, num jardim …

Não que não seja uma forma tão legítima de passar o tempo como qualquer outra.

Cada qual é o senhor do seu próprio tempo e da sua própria vida – e o tempo mais livre que se tem após a aposentação ou a reforma permite um mais largo campo de escolha para as ocupações que cada qual para si prefere.

Não; o ponto não é o jogo de cartas (às vezes substituído por damas ou dominó, aqui mais à mesa de cafés).

O ponto é o símbolo por que a imprensa sempre opta para a ilustração da condição do reformado, tomando a parte pelo todo, numa sinédoque insidiosa.

Nunca aparecem, a ilustrar a situação de reformado, os avós que vão levar e buscar os netos às creches e à escola, ou os dirigentes das Instituições de Solidariedade, ou os igualmente reformados Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues ou Carlos César … ou tantos outros.

(Cada qual preencha de acordo com a sua preferência.)

Essa opção tem uma finalidade e obedece a uma estratégia: trata-se de apresentar os aposentados e reformados como tendo hábitos frugais, que se não traduzem em despesas, como que antecipando, acompanhando e sempre acobertando medidas de política social que os tem como alvo ou objecto – que, normalmente, lhes são desfavoráveis, a começar por lhes infligir cortes nos rendimentos ou no poder de compra.

“Não precisam”; “não têm onde gastar!” – é a mensagem subliminar.

Nunca são apresentados como cidadãos, com direitos; ou consumidores, com despesas; sempre como entes passivos, à mercê da benevolência dos poderes públicos.

A própria linguagem mediática acompanha esta intenção de apagamento civil.

Ainda agora, a propósito do novo corte nas pensões, decretado pelo Governo, os locutores das diversas estações televisivas não encontram outra forma de transmitir as novidades senão por redução a uma mercê: “O Governo dará aos reformados … meia pensão em Outubro” – como se fosse uma esmola por parte de quem nos pastoreia e não a contrapartida de um direito constituído ao longo de mais de 40 anos de contribuições.

É essa, aliás, a opção metodológica na abordagem do tema: a pensão de aposentação ou reforma constitui um direito do trabalhador que para ela descontou ao longo de toda a sua vida activa; ou os descontos mensalmente efectuados pelos trabalhadores, bem como a TSU paga pelos empregadores, constitui uma manancial que os Governos podem gastar como lhes apetecer, para apoios ao emprego ou para redução do défice público, prescindindo da finalidade substitutiva que presidiu à tributação do salário para efeitos de protecção social dos trabalhadores após a cessação da relação laboral?

Como é próprio dos sistemas de protecção social tributários do modelo da social-democracia instituídos na Europa do Norte, no pós-guerra, que nos serviram de inspiração.

 

2 – Infelizmente, durante o Governo da troika, este discurso implícito sobre o carácter precário do valor da pensão, como substituto dos rendimentos do trabalho, constituiu a fundamentação para os cortes nas pensões, decidido pelo Governo de então, a que o Tribunal Constitucional veio pôr um travão.

Ao mesmo tempo, o discurso do poder, com a cobertura da imprensa – que hoje cobre e reproduz acriticamente tudo o que são recados ou mensagens do Governo de turno – foi estabelecendo uma “verdade”, própria de uma visão neoliberal, de que os encargos com as pensões em pagamento constituem um “roubo” que os actuais reformados fazem aos trabalhadores hoje no activo, capturando o valor das contribuições sociais para pagamento das reformas de hoje e deixando desguarnecidas as reservas matemáticas necessárias para honrar as pensões futuras, quando os actuais trabalhadores activos passarem ao estatuto de reformados.  

As pensões hoje pagas colocarão em causa o pagamento das pensões futuras – é o discurso dominante do poder, para justificar os cortes, tenham ou não esse nome, nas pensões.

Um deputado da maioria que suportava o Governo de Passos Coelho definiu mesmo, numa síntese infeliz, essa pretensa “captura” como a “peste grisalha”.

Mas trata-se de uma falácia: nem os Governos, nem as Oposições, nos levam a acreditar que as projecções sobre o que estimam venha a ser a situação financeira da Segurança Social possuam mais credibilidade do que as minhas – que não as faço.

Só nos últimos meses, passámos de uma garantia de estabilidade e cumprimento das obrigações do sistema de pensões, sem qualquer alteração das regras actuais, até 2050, graças às virtudes de uma lei de Vieira da Silva, para um cenário em que, se cumprida a lei (em vigor) de actualização automática das pensões de reforma, o mesmo sistema soçobraria daqui a uma dúzia de anos.

E tudo isto, e o seu contrário, garantido segundo o discurso dos mesmos actores: o Governo, e os seus seguidores; e os opositores.

Todos projectando valores de crescimento do PIB, ou amento da inflação, num dia – que a realidade vem esfrangalhar no dia seguinte.

A lei de Vieira da Silva passou, de depósito de virtudes e de vademecum salvador, a uma incomodidade em menos de um estalar de dedos – só para justificar os cortes nas pensões, com o objectivo de diminuir o défice com o dinheiro dos trabalhadores.

 

3 – Já desde os tempos longínquos em que Pedro Passos Coelho nos governava que não ouvia a expressão “solidariedade intergeracional” para significar e justificar a ablação de parte das pensões de reforma ou aposentação.

Na novilíngua em uso, “solidariedade intergeracional” é uma expressão que só funciona num sentido – traduzido em os reformados e pensionistas se conformarem com cortes nos seus rendimentos ou poder de compra, para assegurar a “sustentabilidade da Segurança Social” – outro mantra do discurso político – para salvaguarda do pagamento das pensões futuras.

Como se o dinheiro das contribuições ficasse guardado num cofre como o do Tio Patinhas, para ser distribuído à plebe como a Rainha Santa distribuía rosas.

Ouvi-a agora de novo pela voz de António Costa, com o mesmo sinistro sentido e efeito: igualmente para explicar os cortes nas pensões decretados pelo actual Governo, depois de clarificado o truque de apresentar como bónus o que não é mais, materialmente, do que a costumada ablação vitalícia de rendimentos.

Afinidades electivas, porventura …

Ou Dupond et Dupont, como sintetizei na última crónica.

 

Data de introdução: 2022-10-05



















editorial

NOVO CICLO E SECTOR SOCIAL SOLIDÁRIO

Pode não ser perfeito, mas nunca se encontrou nem certamente se encontrará melhor sistema do que aquele que dá a todas as cidadãs e a todos os cidadãos a oportunidade de se pronunciarem sobre o que querem para o seu próprio país e...

Não há inqueritos válidos.

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Em que estamos a falhar?
Evito fazer análise política nesta coluna, que entendo ser um espaço desenhado para a discussão de políticas públicas. Mas não há como contornar o...

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Criação de trabalho digno: um grande desafio à próxima legislatura
Enquanto escrevo este texto, está a decorrer o ato eleitoral. Como é óbvio, não sei qual o partido vencedor, nem quem assumirá o governo da nação e os...