HENRIQUE RODRIGUES

Abril em Portugal ( e na Ucrânia)

1 - Não há volta a dar: aqueles que viveram os dias da Revolução e a sentiram como a libertação de um regime autocrático e opressor não veem chegar esta semana mágica, entre 25 de Abril e 1 de Maio, sem um frémito de comoção e uma réplica sempre renovada do ar de festa com que o antigo regime foi derrubado.

Até os filmes que as televisões transmitem, repetindo todos os anos a preparação do movimento militar, as dúvidas no Terreiro do Paço, o assalto ao quartel do Carmo, a personificação em Salgueiro Maia do despojamento dos jovens oficiais, a libertação dos presos políticos, nos mantêm agarrados ao ecrã, a ver todos os anos o mesmo filme, para tentar capturar e reviver alguma da emoção e da alegria desses dias ímpares.

Raramente se terá verificado uma tão profunda mudança na vida colectiva de um país, da noite para o dia, substituindo o medo pela euforia, as grades, simbólicas ou reais, pelo ar lavado, o cinzentismo pela alegria, os silêncios pela voz límpida, a ditadura pela liberdade, como sucedeu em Portugal em Abril de 1974.

E tudo isto quase sem derramar sangue.

Este ano, foi possível voltar à rua, que é onde o povo celebra as suas festas, e percorrer, sem os constrangimentos impostos pela pandemia nos dois últimos anos, o traçado ritual – entre a antiga sede da PIDE no Porto e a Avenida dos Aliados.

Ainda lembrado das comemorações do 31 de Janeiro e do 5 de Outubro, no tempo da ditadura, quase exclusivamente levadas a cabo por figuras, prestigiadas embora, mas já de idade avançada – a antiga geração herdeira da 1ª República -, foi com expectativas muito auspiciosas que se verificou, em massa, a participação da gente nova, nascida já depois da Revolução de 1974, enquadrada ou não em estruturas mais ou menos orgânicas, a tingir de mais alegria e irreverência os cartazes e as palavras de ordem.

Cabe-nos fazer aos mais novos, à geração de Abril, que já só respirou o ar da liberdade, a pedagogia que recebemos dessa geração da Oposição Democrática, nunca cessando de lembrar os traços mais perversos do regime então vigente – que, embora durante décadas adormecidos, parecem ressuscitar como velhos fantasmas, um pouco, ou um muito, por todo o lado ...

Bem sei que vou ser criticado por escrever isto – mas o Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenskii, escolheu acertadamente o símile entre a nossa Revolução do Cravos e o desejo de viver sobre um regime idêntico nessa parte mais longínqua da Europa, quando se dirigiu ao Parlamento português há cerca de uma semana.

Deve desculpar-se-me a arrogância sem remorsos que me dá o viver neste Ocidente da Europa das liberdades, lugar privilegiado entre todos no mundo que nos foi dado para viver; mas se o Presidente da Ucrânia quer para o seu país um regime tirado do modelo ocidental, só se pode dizer que escolheu bem para o seu povo.

 

2 – Uma das figuras do antigo regime que ocuparam um lugar sinistro no aparelho repressivo era a PIDE, a polícia política, que prendia quem pensava ou agia fora dos quadros fechados da Situação, amiúde com tortura, sem processo ou julgamento – e que mantinha em cativeiro quem detinha, em condições sub-humanas, por vezes durante décadas, roubando anos de vida plena a quem cometia o “crime” de pensar pela sua cabeça e de lutar por uma sociedade mais justa e mais livre.

Mesmo quando não estavam presos, não cessava a presença da PIDE nas suas vidas, pois que esta os mantinha sob vigilância apertada, devassando a correspondência, escutando as conversas, bisbilhotando os grupos …

Essa vigilância incidia, aliás, não só sobre esses “cadastrados” – mas sobre a sociedade em geral, procurando extirpar preventivamente a semente da dúvida ou a centelha das ideias. 

Nessas e noutras tarefas, dispunha a PIDE, para além dos agentes propriamente ditos, de um corpo de colaboradores – digamos … - eventuais, “informadores”, que eram conhecidos como os “bufos”.

Como o petit-nom sugere, o papel dos “bufos” era “bufar” – informações, denúncias, suspeitas, obtidas no decurso da vigilância que faziam, ou nas diligências oficiosas que promoviam, a cheirar sinais de oposição ou pensamento livre nos ambientes que frequentavam ou que procuravam.

Não eram bem polícias; tinham, muitas vezes, outra profissão: podiam ser companheiros de trabalho, em quem se confiava e que logo traíam a confiança; ou o frequentador insuspeito da mesa ao lado, nos cafés, ou companheiro do bilhar, ou os que se insinuavam nas reuniões de estudantes, proibidas pelas autoridades, ou um membro do nosso grupo de amigos.

Por uns trocos, para arredondar o salário, faziam chegar à Polícia as denúncias e as suspeitas, ajudando voluntariamente a mandar para a enxovia os que caiam na sua rede.

Às vezes, ainda, apenas para vingar questões pessoais.

Ficando sempre oculta a sua intervenção.

Toda a polícia política era naturalmente execrada; mas os “bufos” estavam no fundo da escala; pois que a traição era o seu modo de ser, a ocultação e o disfarce o seu método.

É, alias, comum a outros contextos o sentimento de repulsa que merecem os “bufos”.

Como se sabe, a propósito de um aspecto muito debatido no âmbito da luta contra a corrupção, como é o caso da chamada “delação premiada”, uma das reservas que tem sido colocada é a de não se poder confiar em quem trai – e que soma à conduta criminal o défice de carácter.   

 

3 – Vieram-me à lembrança os “bufos” a propósito do acolhimento aos refugiados vindos da Ucrânia.

Sem entrar na polémica sobre a natureza da invasão da Ucrânia pela Rússia, alego a formulação exemplar de António Guterres, em Moscovo: é certo que se encontram soldados russos na Ucrânia; e é igualmente certo que não existem soldados ucranianos na Rússia.

Trata-se de um facto incontroverso.

Ora, encontrando-se soldados russos na Ucrânia, caindo bombas russas nesse país, como diariamente nos lembra a voz de autómato do porta-voz do Kremlin, e sendo do domínio do óbvio que, pelo menos as pessoas que fogem da Ucrânia invadida acreditam que o seu país foi invadido e está a ser destruído e os seus cidadãos assassinados – e por isso fogem -, posso imaginar o espanto daqueles que escolheram o nosso país como destino quando, no acolhimento à chegada, entidades públicas portuguesas lhes apropinquam o acolhimento na língua russa por quem está por conta do agressor do qual fogem  – como parece ter sucedido em vários locais!

Pior quando quem acolhe quer saber de quem foge mais do que é mister para o efeito do acolhimento – perguntando pela família, que ficou na Ucrânia, como quem é de casa e quer saber do estado de saúde …

Como escreveu Sophia de Mello Breyner, “por insídias por venenos/ E por outras maneiras que sabemos/ Tão sábias tão subtis e tão peritas/ Que nem podem sequer ser bem descritas.”

Teve o episódio pelo menos o efeito virtuoso de darmos finalmente conta de que, com financiamento de Putin, e para além do embaixador propriamente dito, o Kremlin dispõe, desde há anos, no nosso país de brandos costumes, de uma rede de outros embaixadores, mais discretos, escondidos sob o manto de associações de origem étnica, financiados pelo dono.

Mas tiveram de ser os fugitivos a interpelar os responsáveis pelo insólito acolhimento.

Quer nós, cidadãos de Abril, quer os que, em fuga, nos procuram, merecíamos melhor – para mais nestes dias, em que o aroma da liberdade tem a intensidade da Primavera.

 

Data de introdução: 2022-05-04



















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