HENRIQUE RODRIGUES

O Príncipe

1 - “É o direito que serve a política, não é a política que serve o direito” – foi a fórmula utilizada pelo Presidente da República no contexto da argumentação com que justificou a promulgação, contra a vontade do Governo, dos diplomas aprovados na Assembleia da República, relativos aos apoios sociais a conceder aos trabalhadores independentes – deverei dizer antes “população trabalhadora independente”, em homenagem à linguagem amiga da igualdade de género? -, bem como aos sócios gerentes, para compensação da perda de rendimentos devido à pandemia.
Numa hipótese de leitura, o Presidente da República teria razão: com efeito, as leis são elaboradas por iniciativa do poder político, representam e veiculam os valores e as opções desse poder e o legislador mais não faz senão traduzir nas formas e modelos legislativos o sentido dessas opções da gestão política da sociedade.
Isto é assim, quer nas democracias, quer na ditaduras: quem exerce o poder, produz as leis que regem a vida pública e privada e a que os cidadãos obedecem.
(Embora, nas ditaduras, por vezes se dispensem mesmo as leis e funcione apenas o arbítrio … O que pretendo salientar é que a produção legislativa pelos titulares do poder político, formalizando as regras de funcionamento da sociedade, não é privativo das democracias.
E mesmo nas ditaduras procura-se, em regra, uma certa aparência de legalidade como limite da acção política.
Pelo seu lado, nas democracias, é o povo soberano que elege livremente os seus representantes, que elege, por via directa ou indirecta, o legislador e que determina, pelo sufrágio, quais as leis a serem aprovadas.)
Nesse sentido, como comecei por dizer, a justificação dada pelo Presidente da República traduz o óbvio: as leis, ou, mais geralmente, o direito constitui um instrumento do poder político, conformando a vida social de acordo com as políticas prevalecentes.
E, nessa perspectiva, o direito serve a política, dando aparentemente razão à tese do Presidente.
Mas a leitura da fórmula presidencial , no presente contexto, não é nesse sentido.
Escrevi acima que o império da lei não é privativo das democracias; mas é delas requisito constitutivo.
Na verdade, o titular do poder político tem a legitimidade – e a força - para produzir as leis que conformam uma certa sociedade.
Mas, nas democracias, uma vez produzida, pela fórmula canónica, a respectiva legislação, todos lhe devem obediência – até o Príncipe.
Ao contrário do que escrevia Nicolau Maquiavel, o Príncipe, e a Razão de Estado, não estão acima da lei.

2 – Ora, neste outro nível de leitura, a explicação do Presidente da República é tudo menos linear.
Com efeito, não podemos perder de vista o contexto: tratava-se de saber se a Assembleia da Republica podia, à face da Constituição, aprovar medidas legislativas que se traduzissem em aumento de despesa ou diminuição da receita estabelecidas no Orçamento de Estado – havendo uma norma da Constituição que o impede com meridiana clareza, segundo o generalizado consenso.
Trata-se da chamada norma-travão – artº 167º, 2 da Constituição.
(Há palavras que, em certos momentos, saem do restrito universo semântico a que nos habituáramos e passam a ser enriquecidas metaforicamente por novas utilizações.
O caso do travão, e do alargamento do campo semântico para lá do domínio da mecânica dos veículos, é uma delas: para além da norma-travão, a propósito da Constituição, também o Primeiro Ministro a tem aproveitado para as variáveis possibilidades de reabertura da sociedade, ameaçando com a utilização do travão  nos próximos patamares de desconfinamento, decorrentes da alteração do índice de infecção pelo CoVID 19 e do hoje famoso “Rt”.)
Na verdade, segundo o princípio, enunciado pelo Presidente da República, do predomínio do político sobre o jurídico, o poder político tem a competência para alterar a Constituição, designadamente alterando o art 167º, 2 da Lei Fundamental, se a norma deixar de lhe servir, passando a conferir aos deputados a iniciativa legislativa sem as limitações e os constrangimentos da norma-travão actualmente em vigor.
Mas, enquanto tal norma constitucional persistir, e de acordo com o princípio do primado da lei, tal norma terá de ser cumprida por todos; e o primeiro deles deverá ser o Presidente da República, titular da mais alta função do regime constitucional.
Aí, e salvo o devido respeito, o direito prevalece e limita a acção política.
O Príncipe deve, também ele, obediência à lei – enquanto for lei, enquanto vigorar.
Ora, parece não ter sido o caso – a crer na quase unanimidade dos constitucionalistas, sejam mais próximos do Governo, sejam-no do Presidente.
A democracia é fundamentalmente um procedimento – e é o cumprimento estrito por todos das regras e dos procedimentos que assegura a defesa dos direitos dos cidadãos face ao poder do Estado – por natureza, sempre excessivo e tendente à concentração.

3 – Não está em causa a justiça das medidas de apoio aos trabalhadores independentes e aos sócios gerentes, aprovadas  pela Assembleia da República.
Nessa medida, não se pode acompanhar a avaliação feita dessas medidas, como tendo “efeito injusto ou perverso”, como as qualificou a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – com o argumento de que beneficiariam com iguais montantes trabalhadores independentes e sócios gerentes com diferentes graus de taxa contributiva, pagando o mesmo subsídio – de 665 euros – a quem desconta por mês 28 euros ou 100 euros.
Teria razão se esta nova prestação social aprovada pela Assembleia da República constituísse uma prestação de base contributiva,  duradoura, como a reforma, o subsídio de doença ou o de desemprego.
Não é esse o caso: a nova prestação social, sendo embora também uma prestação substitutiva dos rendimentos do trabalho, não tem natureza contributiva; é uma medida de emergência, temporária, visando repor as condições mínimas de subsistência de trabalhadores independentes ou sócios gerentes que tenham tido uma quebra súbita de rendimento efectivo, por causa da pandemia.
E para terminar quando voltar a normalidade.
Claro que teria razão a Ministra do Trabalho, e seriam injustos e perversos os efeitos, se se atribuísse de forma duradoura um subsídio mensal de 665 euros a um sócio gerente ou a um trabalhador independente, que pagasse uma TSU mensal de 28 euros – e se mantivessem as centenas de milhar de pensões de reforma inferiores a esse montante, a trabalhadores reformados que tivessem descontado muito mais do que esses 28 euros, durante 40 ou mais anos seguidos.
Mas, tanto quanto se sabe, não será o caso, tratando-se de uma prestação de natureza diferente: como disse, temporária, restrita à situação de emergência e visando a manutenção das condições de vida de que gozavam os seus destinatários antes da crise pandémica.
Questão diferente é a de saber se a Ministra do Trabalho, e o Governo, tem ou não razão – não por essa via da justiça e proporcionalidade das medidas, mas pela incompetência do Parlamento em legislar praeter-Orçamento do Estado, como referi acima.
Creio que têm.

4 – Fez na semana que agora acaba 45 anos que foi aprovada pela Assembleia Constituinte, em 2 de Abril de 1976, a Constituição da República Portuguesa.
Tive o privilégio de assistir a algumas Sessões dessa Assembleia, levado pelo meu sogro, que foi deputado à Constituinte.
Ainda lembro bem a qualidade dos deputados Constituintes – uma plêiade de gente maioritariamente com passado de luta e oposição ao Estado Novo, de grande craveira intelectual e moral, com hábitos de vida modestos, norteados pelo serviço público e pela democracia, respeitados pela sociedade em geral e que nos deixaram uma Lei Fundamentam que tem sabido resistir ao decurso do tempo.             
Continua a traduzir bem os ideais da Revolução de Abril e corporiza a vontade de uma sociedade mais justa.
Se ainda pouco avançámos na perspectiva da igualdade dos cidadãos e da justiça social, a culpa não é da Constituição.
É nossa, que a não temos sabido cumprir!

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)   

 

Data de introdução: 2021-04-08



















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