ISABEL JONET, DO BANCO ALIMENTAR CONTRA A FOME, E A PANDEMIA EM PORTUGAL

IPSS são novamente a almofada da população que ficou sem nada

Chegou sem bater à porta, apesar dos vários indícios de que poderia estar para chegar! Entrou bruscamente e apanhou toda a gente desprevenida. Os mais vulneráveis não tiveram qualquer hipótese de reação e muita gente caiu numa situação até há pouco impensável. Sim, o novo coronavírus chegou sem avisar, levou tudo à frente e deixou muita gente sem nada para… comer. Em dois meses, o Banco Alimentar Contra a Fome recebeu mais 60 mil pedidos de ajuda, a juntar às 380 mil pessoas que já apoiava habitualmente. A crise chegou, instalou-se e, segundo Isabel Jonet, presidente da Federação de Bancos Alimentares Contra a Fome de Portugal, está para durar.
“Este é um momento em que se pode dizer que muitas pessoas foram surpreendidas com a situação de pobreza e até de fome. E são pessoas que não estavam, de algum modo, a prever que isto pudesse acontecer. Portanto, a brutalidade e brusquidão do impacto da Covid-19 em famílias que não estavam minimamente preparadas para tal, veio atirá-las para uma situação que lhes era completamente estranha. E isto provocou várias consequências”, começa por referir Isabel Jonet, acrescentando: “Estas famílias, de um momento para o outro, ficaram sem qualquer rendimento e impedidas de trabalhar, por causa do estado de emergência e porque os locais onde trabalhavam encerraram. E falo dos ginásios, dos fisioterapeutas, dos higienistas, dos dentistas, das empregadas domésticas, dos taxistas, dos agentes culturais, etc.. E naquele momento estas pessoas deixaram de ter onde trabalhar, mas também há as pessoas que foram para o lay-off e o que recebem não chega para pagar as despesas. Muitos completavam o seu rendimento com biscates e estes desapareceram de um momento para o outro”.
Perante o caos social que se avizinhava e o cenário de fome emergente, os Bancos Alimentares tiveram que se reinventar e reestruturar para poderem dar resposta a uma situação completamente nova, pois a economia parou!
“Tivemos que reconstruir a rede de apoio social para chegar as estas pessoas. E isto foi um impacto terrível, porque foi inesperado e ninguém estava preparado para uma coisa destas” sustenta, assinalando uma primeira grande diferença face à anterior crise que assolou a sociedade portuguesa: “Na altura da crise de 2010, as pessoas estavam preparadas e anteciparam que vinha aí uma crise, porque foram medidas tomadas a pouco e pouco, mas estas estavam preparadas. Agora não! Além desta situação de não terem rendimentos, ainda tinham os filhos em casa. Estas famílias não estavam habituadas a ter que alimentar os filhos, que comiam na escola, no infantário ou na creche. E, de repente, estão em casa, não têm dinheiro e ainda têm que dar de comer aos filhos, que estão sempre a pedir comida! Isto causa uma pressão enorme nas famílias”.
E mais do que semelhanças, a presidente da Federação dos Bancos Alimentares Contra a Fome encontra diferenças entre o momento que o país atravessa e a crise de 2010.
“Há semelhanças, mas há diferenças grandes. Primeiro, esta forma brusca, que ninguém estava à espera, e depois o encerramento total da economia… Não havia onde ir trabalhar! No caso da população sem-abrigo, não tinham sequer onde ir pedir alimentos durante o dia, e estamos a falar dos mais pobres dos mais pobres, porque os restaurantes estavam fechados. No entanto, em 2010 ainda havia para onde fugir, muitos dos nossos jovens foram para o estrangeiro à procura de emprego, e agora não. Depois, penso que as consequências a longo prazo vão ser mais profundas, seja na economia, seja na sociedade, porque houve um impacto generalizado, as pessoas têm muito medo de ir para fora e quem quer produzir não consegue exportar. Hoje vemos muitos empresários que continuaram a resistir e até alteraram a sua produção, mas que não conseguem exportar”.
E se a crise se instalou generalizadamente, regiões há que foram e estão a ser mais castigadas.
Segundo Isabel Jonet, “todas as regiões do país foram afetadas, mas as suburbanas foram muito mais afetadas do que o interior do país”.
E as razões são diversas para que tal seja assim: “Nestas zonas suburbanas muitas respostas sociais encerraram, há muito mais população que depende de biscastes e da economia paralela, pessoas que pertencem à chamada economia informal e que deixaram de poder trabalhar. Depois, é nestas zonas que há também uma maior concentração de restaurantes, de hotéis, de turismo, de alojamentos locais… A zona mais castigada foi Lisboa, muito mais do que qualquer outra, depois foi Setúbal, a seguir o Algarve, por causa do turismo, e só depois é que surge o Porto”.
No sentido de combater o flagelo, o Banco Alimentar Copntra a Fome lançou a Rede de Emergência Alimentar (REA), através da qual recebeu “várias vezes 2.000 pedidos de ajuda/dia”!
Não prestando apoio direto às pessoas, a solução passou por ativar os habituais e novos parceiros para que a resposta às pessoas fosse o mais rápida possível.
“O que fizemos foi criar um formulário em que as pessoas podiam fazer o pedido individual e nós encaminhávamo-los para uma instituição ou junta da freguesia da região. Lançámos apelos às câmaras municipais e às juntas de freguesia para que, localmente, pudessem abrir respostas sociais quando não as tinham, porque muitas instituições fecharam portas”, explica Isabel Jonet, lembrando o papel fundamental das IPSS em todo o processo: “Uma vez mais, as Instituições Particulares de Solidariedade Social sempre que puderam mantiveram-se abertas, mas em muitos casos não puderam, porque o pessoal teve que ficar em casa, mas também muitas delas encerraram e deixaram de ter espaço físico para apoiar a população. Num primeiro momento foi preciso reconstruir esta rede, depois, pouco a pouco, as instituições foram reabrindo e com voluntários foram criando soluções. Se não fosse a rede das IPSS que levou alívio alimentar, dinheiro e medicamentos, entre outros bens, podíamos ter tido uma convulsão social gravíssima. Esta é uma realidade que as pessoas têm que enfrentar em Portugal. Uma vez mais, foi a rede das IPSS a almofada de segurança da população que ficou sem nada”.
E daqui, Isabel Jonet passa rapidamente para um retrato do tecido social lisboeta, sublinhando que o que se passa atualmente com o recente surto de Covid-19 não é nada que não fosse expectável. E enumera as razões: “Este surto grande em volta de Lisboa não é nada que não fosse previsível, porque em Portugal temos um drama terrível com a habitação. Em muitos casos, as pessoas não têm casas, têm quartos. São pessoas que dividem apartamentos e onde apenas têm um quarto onde vivem famílias inteiras. Estas pessoas vivem de uma forma muito pouco digna e o risco de contágio é muito grande. É que, para além disto, são pessoas que andam nos transportes públicos, têm pouco espaço para estar e, depois, há um terrível problema de exclusão social no acesso à educação. Estas famílias com filhos vivem que vivem em más condições de habitação não podem proporcionar aos filhos a capacidade de ter um computador para assistir à telescola ou às aulas virtuais”.
Resumindo: “O que esta pandemia trouxe foi, em primeiro, um acentuar das desigualdades sociais naquilo que é o acesso à educação, acesso a transportes individuais e, na minha opinião, vai ter um reflexo ainda maior pela falta de acesso a empregos que permitam às pessoas que continuem em casa em teletrabalho. Muitos não o podem fazer”.
Com inúmeras pessoas a necessitarem de ajuda alimentar, com a sociedade fechada em casa, angariar alimentos foi uma aventura. No entanto, a experiência de décadas do Banco Alimentar no apoio a quem precisa veio ao de cima e a criatividade foi posta em prática.
“As lojas estavam com horário reduzido, o acesso às lojas era reduzido a determinado número de pessoas e seria uma falta de bom senso termos voluntários na rua”, afirma Isabel Jonet, e, inevitavelmente, a situação refletiu-se nas quantidades de alimentos recolhidos.
“Uma campanha de recolha de alimentos dos Bancos Alimentares, e há 21 em todo o país, envolve cerca de 42 mil voluntários, que estão em duas mil lojas e convidam quem vai às compras a ser solidário”, lembra, explicando como foi contornada a dificuldade: “Então, tivemos que recorrer aos vales e à campanha online no site www.alimenteestaideia.pt. Mas estas soluções nunca podiam ser comparáveis, porque os voluntários interpelam as pessoas e não é a mesma coisa ser interpelado por um papelinho que é o vale”.
Cientes de que os resultados não poderiam ser os mesmos das campanhas presenciais, mesmo assim os responsáveis pelo Banco Alimentar foram surpreendidos com o dobro daquilo que foi angariado em campanhas anteriores do mesmo género.
“Simultaneamente, tivemos apoio de muitas empresas e de canais de televisão e, no âmbito da Rede de Emergência Alimentar, fizemos campanhas que permitiram angariar dinheiro e, assim, vamos poder não falhar às instituições”, enfatiza, sublinhando o papel fundamental de muitas empresas no apoio ao Banco Alimentar.
“As empresas foram muito solidárias e foi algo transversal. Por exemplo, o BPI fez uma campanha enorme que permitiu angariar 1,3 milhões de euros, porque mobilizou outras empresas. Houve também empresas estrangeiras, como a Google, a Websummit, o Banco de Desenvolvimento da América Latina e a FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, entre outras, que deram donativos para comprar alimentos. Mas também tivemos empresas mais pequenas, que se aliaram umas às outras, e quiseram marcar presença. Houve uma mobilização muito boa da sociedade como um todo, mas também só podemos fazê-lo porque lançámos esta marca da Rede de Emergência Alimentar que está para além dos Bancos Alimentares e que permitiu continuar a garantir apoio àquelas 380 mil pessoas que já recebiam ajuda alimentar e absorver mais 60 mil pedidos que tivemos em dois meses. Isto é incrível, em dois meses tivemos 60 mil pessoas que pediram ajuda à REA e que encaminhámos para IPSS e juntas de freguesia”, destaca Isabel Jonet.
Um aspeto positivo da situação é que a instituição não tem menos produtos, pelo contrário, mas porque tem vindo a comprar com os donativos de muitas e muitas empresas.
“Isto permite-nos também alargar o leque de pessoas que são apoiadas. Por exemplo, estamos a apoiar uma série de jogadores de futebol, de clubes mais pequenos, que estão sem salário. Igual situação com a área da cultura. Havia muitos concertos rock e festivais de música em Portugal e não há nenhum… E não estou a pensar nos artistas, mas nos técnicos e todas as pessoas que estão envolvidas nesses espetáculos, que trabalhavam no verão para terem no inverno. Essas pessoas não têm onde ir buscar o seu sustento e muitos têm filhos”, afirma.
Até agora, o Banco Alimentar Contra a Fome não teve falhas no fornecimento, mas… “Ainda não estou completamente descansada, porque não sei se poderemos fazer a campanha de novembro e não sabemos como é que isto evolui”.
De salientar ainda o facto de a instituições, mesmo em período de confinamento, ter conseguido, no âmbito da REA, um total de 1.144 pessoas que se inscreveram em todo o país para fazer voluntariado e que foram encaminhadas para as instituições que no terreno fazem a distribuição da alimentação.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2020-07-09



















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