1 - A CNIS organizou, no âmbito da Festa da Solidariedade, em Vila Real, em 7 de Junho, um seminário sob o tema “Garantir os Valores com Sustentabilidade Financeira – Um Desafio para as Instituições”.
Retomo nesta crónica alguns dos tópicos que constituíram o essencial da minha participação nesse seminário.
Não se trata de uma opção entre os valores e a sustentabilidade.
Os valores que constituem o sopro vital das Instituições de Solidariedade não são negociáveis nem ornamentais: eles são verdadeiramente a sua alma.
De forma que o desenvolvimento do tema “Garantir os Valores com Sustentabilidade Financeira” não pode ser senão uma reflexão sobre a sustentabilidade ou a falta dela.
Os valores não se discutem.
Nos debates sobre questões da política geral, costumo partir sempre do princípio – e o princípio é a Constituição da República.
Ora, os deputados constituintes prescreveram, no artº 63º, que o Sistema de Segurança Social de provisão pública, universal, unificado e descentralizado, teria a participação das Instituições Particulares de Solidariedade Social, designadamente no que respeita às matérias objecto dos artsº 63º (Segurança Social), 67º, 2., b) (Criação de uma rede nacional de creches e outros equipamentos de apoio à família, bem como uma política de terceira idade), 69º (Infância, designadamente na protecção e promoção dos direitos dos menores), 70º, 1 (direitos económicos, sociais e culturais dos jovens, designadamente no aproveitamento dos tempos livres), 71º (deficiência) e 72º (Terceira Idade).
Por sua vez, a 4º Revisão Constitucional, de 1997, passou a incluir a exigência do apoio do Estado ao desenvolvimento pelas IPSS do referido encargo constitucional nesses domínios.
Estamos, pois, no domínio da provisão de bens públicos, integradores da natureza do Estado Social que é o nosso, em cuja distribuição as Instituições de Solidariedade Social participam por atribuição constitucional, para o que são credoras do apoio do Estado – em condições de sustentabilidade, única forma de cumprir, materialmente, a Constituição.
2 – Acompanho de perto o trabalho desenvolvido pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social desde1980, o que me tem permitido um olhar diacrónico e próximo sobre esta singular especificidade portuguesa: a participação, muito significativa, quer do ponto de vista qualitativo, quer quantitativo, de entidades de direito privado, mas de fim ideal ou altruístico, na provisão de prestações de natureza pública, como sejam as prestações de acção social, ou de protecção social, aos cidadãos.
Tal privilégio permite-me, creio-o, a possibilidade de identificar ou acompanhar as principais tendências que têm definido o modo como essa actividade é olhada, por fora e por dentro; e, nesse contexto, aquela que tem sido a forma como o Estado encaixa, no cumprimento dos seus deveres prestacionais aos cidadãos, ora como quem assimila, ora como quem rejeita, esta espécie de corpo estranho, cujo caldo cultural é a mor das vezes de uma escala completamente distinta dos rituais e procedimentos públicos “stricto sensu”.
Como diz o povo, “muito sabe o diabo, não por ser sábio, mas por ser velho …”
Há pouco tempo, naquelas arrumações de caves e sótãos onde fica arquivada por gerações uma parte das memórias do que foi a nossa vida (lembram-se da Toada de Portalegre, do José Régio, “da casa em que morei velha/Cheia dos maus e bons cheiros/Das casas que têm história,/Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória/De antigas gentes e traças,/Cheia de sol nas vidraças/E de escuro nos recantos,/Cheia de medo e sossego,/De silêncios e de espantos,”) pois há pouco tempo, “que havia o vento suão/ de /fazer senão trazer”-me … “ um curioso papel, que jazia à espera do pó dos séculos ou de umas partilhas que o destinassem à venda do papel ao quilo?
Trata-se de um documento elaborado sob os auspícios da prestigiada Direcção-Geral da Acção Social – antecessora da actual Direcção-Geral da Segurança Social, departamento central do MTSSS -, em Abril de 1995.
Tal documento apresenta uma relação dos chamados custos referenciais /tendenciais das diversas respostas sociais, à época, com indicação paralela dos valores de comparticipação da Segurança Social, por acordos de cooperação.
A informação que dele consta, produzida por um departamento governamental, contém alguns dados que são muito relevantes para a perspectiva de sustentabilidade financeira que hoje somos chamados a tratar.
Comparando os valores dos custos em 1995, bem como a percentagem de comparticipação da Segurança Social nesses custos, nesse mesmo ano, com os custos e percentagens de comparticipação de hoje, compreendemos facilmente porque é que a questão da sustentabilidade assumiu a urgência que tem hoje.
Alguns exemplos comparativos:
ATL com almoço – percentagem de comparticipação em 1995: 40%; em 2018, 34%
ATL sem almoço – percentagem de comparticipação em 1995: 72%: em 2018, 34%
Lar de crianças e jovens – percentagem de comparticipação em 1995: 63%; em 2018, 49%.
Lar de idosos – percentagem de comparticipação em 1995: 53%; em 2018, 36,5%
Centro de Dia – percentagem de comparticipação em 1995: 48%; em 2018, 25%.
Centro de Convívio – percentagem de comparticipação em 1995: 71%; em 2018, 44%.
SAD – percentagem de comparticipação em 1995: 70%; em 2018, 57%.
3 – Poderão os mais cépticos aduzir que os valores dos custos actuais, que serviram de base à comparação, são dados próprios da CNIS, e que haverá que testá-los.
Mas importa não esquecer que, no que respeita ao lar de idosos, o valor considerado como custo actual foi o que consta da Adenda ao Compromisso de Cooperação para 2018 – isto é, trata-se de valor definido pelo Estado.
Ainda a propósito deste indicador, relativo ao lar de idosos, ele permite outra inferência relevante: permite concluir que o custo então definido pela Direcção-Geral da Segurança Social em 1995 (67.873$00 = 340,00 euros), actualizado com o índice de preços ao consumidor, entre 1995 e 2018, passa para 543,00 euros.
Seria este o valor a preços constantes.
Ora, o custo em lar de idosos, em 2018, de acordo com o valor de referência, é de 1025,71 euros – quase o dobro do custo actualizado de 1995.
É legítimo extrair desta combinação de factos comprovados duas constatações:
Em 1º lugar, como as IPSS vêm sustentado há muito, pode dizer-se que a inflação relativa às despesas das Instituições tem sido muito superior à inflação oficial no nosso País.
Esta divergência é mais óbvia no que diz respeito às despesas com pessoal, designadamente por via dos aumentos do salário mínimo nacional, que tem crescido, nos últimos anos, a uma taxa anual de cerca de 5%.
Em contraponto, as actualizações salariais negociadas em sede de contratação colectiva têm sido efectuadas, em média, abaixo da inflação.
O agravamento da despesa é causado, assim, por iniciativa do Governo - não por actuação das Instituições.
Mas também as despesas com energia, combustíveis, água e comunicações têm crescido a um ritmo superior à inflação.
Em 2º lugar, há que reconhecer que as exigências regulamentares, burocráticas, administrativas, cuja teia cresce diariamente, tem tido um efeito porventura ainda mais extenso nesse crescimento dos custos por utente.
HCCP, Segurança contra Incêndios, Certificação das redes de gás e eléctrica, desinfestações e desratizações periódicas, projectos de engenharia e arquitectura para licenciamento tardio de equipamentos, pagamento de taxas e licenças municipais, certificados de registo criminal, para trabalhadores e dirigentes, Registo de beneficiário efectivo, Contabilidade para o Sector não lucrativo, obrigatoriedade de contratação de revisor oficial de contas … são apenas algumas das novidades, de 1995 para cá, que, sem prejuízo das inegáveis virtualidades em matéria de protecção dos direitos dos utentes, ou do reforço da transparência, constituem objectivamente uma panóplia de factores de agravamento da despesa de gestão de uma Instituição.
O mesmo se poderia referir em relação a outras respostas sociais – mas o ERPI tem a singularidade de poder alicerçar todos estes raciocínios em dados fornecidos pela Administração Pública.
4 – É curioso notar que o estado da cooperação em 1995 é, no essencial, o que foi deixado pelo meu vizinho do lado nestas crónicas, o Dr. Silva Peneda, que foi Ministro de 1987 a 1993.
Bem sei que se pode igualmente trazer ao debate o grande crescimento da despesa social durante este período, decorrente da celebração de novos acordos de cooperação e de diferentes programas de construção de equipamentos sociais.
Ouvimos, frequentemente, a referência aos 1.400 milhões de euros anuais para a política de cooperação.
Mas tanto é verdadeira uma coisa como a outra: quer a despesa global, quer a menor comparticipação financeira da Segurança Social por utente e por mês em relação ao custo efectivo.
Como escrevia D. António Ferreira Gomes, nas Cartas ao Papa, “quando a saúde não é boa, cada um é que sabe onde lhe dói.”
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
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