JOSÉ FIGUEIREDO

A Ilusão da Integração Fiscal Europeia

Perpassa pela Europa um aparente vento de mudança.

Primeiro foi o Livro Branco Sobre o Futuro da Europa, depois foi a eleição de Emmanuel Macron em França com um claro compromisso de reforma da Europa e, em particular, da zona euro (chegou a falar de uma refundação), finalmente aparece a carta do governo espanhol onde constam propostas concretas de reforma UEM.

Como eu não acredito que o governo espanhol tivesse o atrevimento de enviar a carta sem algum prévio aquecimento das costas pela diplomacia de um bloco significativo de países membros, acredito que algo está, de facto, “en marche”.

O que daqui vai sair, ignoro. Na verdade, depois da visita de Macron a Angela Merkel, não fiquei nada com a certeza que, por reforma da zona euro, a França e Alemanha entendam a mesma coisa. Veremos!

O objetivo da crónica de hoje é algo limitado. Gostaria de colocar algum refrigério nos entusiasmos que por aí correm quanto aos efeitos salutares da união fiscal – ou de progressos nesse sentido – enquanto forma definitiva de salvação da zona euro.

Há quem pense que a zona euro pode salvar-se com a integração fiscal e nomeadamente com as transferências dos países ricos para os pobres em tempos de stress.

Normalmente vêm-nos à cabeça os casos dos países federais como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália ou mesmo, convém lembrá-lo, a Alemanha. É sempre útil manter presente que uma das razões da oposição alemã ao federalismo europeu é que sabe muito bem o que tem em casa!

Nesses países federais, quando um dos estados membros enfrenta um choque económico adverso, não tem de preocupar-se com os pagamentos dos subsídios de desemprego (que sobem muito quando a crise multiplica o número de desempregados), dos salários dos professores ou dos militares. Essas despesas são asseguradas pelo orçamento federal.

Isso ajuda em tempos de crise?

Claro que sim! Mas importa moderar o entusiasmo no que à zona euro concerne.

Desde logo convém não esquecer essa comezinha evidência empírica que, mesmo em estados unitários como Itália, a existência de uma perfeita comunidade fiscal, não impediu nem impede que exista um norte rico e próspero e um sul pobre e atrasado.

Naturalmente que um efeito de um choque sobre o PIB de um país da zona euro tem um impacto muito maior sobre o consumo privado nesse país do que acontece em estados que fazem parte de federações.

Tipicamente num país da zona euro uma contração de 1% no PIB implica uma contração de 0,6% do consumo privado. Esse valor é de cerca de 0,2% nos Estados Unidos, Canadá ou Alemanha.

Contudo, conforme mostra um estudo do FMI de 2013, “Toward a Fiscal Union for the Euro Area”, mesmo nos estados federais, o papel das transferências fiscais no amortecimento dos efeitos do choque no consumo das famílias é relativamente pequeno quando comparado com o total do efeito de amortecimento.

Nos estados federais os seguros privados e rendimento de capitais (barra cor de rosa) asseguram a maior parte do amortecimento (mais de metade nos Estados Unidos e Alemanha e cerca de 1/3 no Canadá) tendo as transferências fiscais (barra grená) um papel menor (entre 1/7 na Alemanha e 1/3 no Canadá). Na zona euro não só o amortecimento é menor como, por outro lado, a quase totalidade provém de soluções de endividamento ou mobilização de poupanças (barra vermelha) – o peso dos seguros privados ou rendimentos de capitais é quase nulo.

O que quero dizer é que, mesmo que conseguíssemos na zona euro níveis de integração fiscal elevados, próximos dos estados federais que podemos tomar como modelos, isso não seria suficiente para amortecer eficientemente os choques económicos.

Um dos casos de mutualização europeia de que mais se fala é a possibilidade de o subsídio de desemprego ser total ou parcialmente um encargo comum europeu.

Na prática o subsídio de desemprego, mesmo a nível nacional, já é um sistema mútuo - todos descontamos para um fundo comum que depois acorre aos que têm a infelicidade de cair na situação de desemprego.

Em teoria nada impede que o sistema seja alargado a uma mutualização europeia – em vez de contribuirmos para uma mútua nacional contribuímos para uma mútua europeia.

A mutualização europeia teria uma enorme vantagem em caso de choques assimétricos. Se alguns países são afetados por um choque que aumenta subitamente o desemprego e outros países se mantêm em situações “normais” ou menos adversas, o estado que está em dificuldades não vê o seu orçamento com um buraco súbito gerado pela necessidade de acudir aos desempregados.

Podemos imaginar o que teria ajudado em Portugal, no pico da crise, se o aumento de despesa pública com subsídios de desemprego tivesse sido pago por um orçamento europeu.

Mas também aqui temos de moderar o entusiasmo. Pode não ser assim tão simples mutualizar os benefícios de desemprego a nível europeu. Os atuais sistemas nacionais de proteção no desemprego são muito diferenciados – alguma harmonização teria de ser prévia ao colocar o sistema em comum. Mas isso implica perdedores e ganhadores – resistências nacionais vão ocorrer.

Claro que se pode pensar num sistema mais simples indexado não aos benefícios em si mesmos mas apenas a variações súbitas e imprevistas nos níveis de desemprego em estados membros. Mais simples, sem dúvida. Fácil? De todo!

Por outro lado, uma coisa são choques assimétricos temporários (e para esses, em princípio ninguém se incomoda em contribuir) outra coisa são desequilíbrios permanentes em que alguns pagam permanentemente para outros.

Eu, que felizmente nunca fiquei desempregado, não me incomodo de contribuir para os meus concidadãos que tiveram ou têm a infelicidade de perder o trabalho. Mas incomoda-me contribuir para situações permanentes e de claro subsídio social oculto.

 

Um exemplo típico: nas zonas turísticas os operadores das mais diversas atividades recrutam pessoas em contratos a termo de Março/Abril a Outubro, ficando as pessoas no desemprego no período restante.

Na verdade, nem sequer se trata de falsos contratos a prazo – o trabalho é mesmo sazonal. O problema é que o fundo de desemprego, que devia funcionar como um seguro para situações súbitas e imprevistas, na verdade acaba por funcionar como uma forma de subsídio coletivo a uma atividade económica privada.

Naturalmente que a solução não passa por obrigar os operadores a contratar em permanente o que é por natureza sazonal. Contudo, atividades com um grande peso de contratos a prazo deveriam contribuir mais para o seguro de desemprego que atividades com emprego estável.

Não estou a dizer nada de excêntrico. O programa do atual partido no poder em Portugal previa qualquer coisa de similar mas que não viu ainda a luz do dia.

Em suma:

  1. A integração fiscal não chegaria nunca para salvar a zona euro – é curto! Contudo, pequenos passos de mutualização orçamental ajudariam a combater os choques assimétricos e seriam bem-vindos. E porque não começar pelo subsídio de desemprego? Não parece impossível!

  2. Mas, na Europa, como nos Estados Federais bem-sucedidos no mundo, o papel do setor privado como gerador de fatores de amortecimento dos choques será tão ou mais importante que as transferências fiscais. Mas aí são outros quinhentos. Fica para outro dia!

 

 

Data de introdução: 2017-06-09



















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