OPINIÃO

O princípio da Incerteza

1 - A primeira impressão deixada pelo acórdão do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade das disposições da Lei do Orçamento de Estado de 2012 que confiscavam os subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores no exercício de funções públicas e aos pensionistas, quer do regime geral de Segurança Social, quer da Caixa Geral de Aposentações, é uma impressão favorável.
Aqueles que, como é o meu caso, têm da democracia liberal uma noção mais ligada ao respeito pelos procedimentos e pelas formalidades do que à consideração pela substância, não podem deixar de sentir uma certa e justa euforia pela constatação de que, na realidade, em Portugal funciona o sistema de freios e contrapesos que, neste tipo de regime, se destina a limitar o poder dos governos e a sua tendência para o arbítrio.
Como diziam os clássicos, se é certo que todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.
Neste sentido, corrupção não é apenas a venalidade: é também o excesso, isto é, o exercício do poder que ultrapassa os limites do mandato conferido pelo Povo.
O voto não legitima tudo – limita-se a habilitar o Governo a governar dentro dos limites da Constituição e no respeito pela lei.
Por isso, quando uma instituição que integre o acervo constitucional surge a impor ao poder executivo limites às suas decisões, ao ponto de as revogar, este simples facto, independentemente da razão substancial da sindicância, representa só por si um sinal de saúde democrática.
No nosso regime, de privilégio e exclusividade dos partidos quanto à representação política, não é de esperar que essa vigilância actuante seja exercida pelo Parlamento, refém que se encontra este, nomeadamente em situações de maioria absoluta, das direcções partidárias que igualmente comandam o Governo.
Ao contrário da lógica constitucional, entre nós é o Governo que manda no Parlamento, e não, como deveria ser, este a impor-se àquele.
Do Presidente da República, que se colocou da banda do Governo quanto às opções fundamentais da política de austeridade, também não é de esperar nenhum travão de fundo às decisões do executivo.
Mesmo quando discorda ou diverge – o que, a crer nas suas palavras, tem sucedido algumas vezes -, a intervenção presidencial tem-se pautado mais por um registo cifrado, à Eanes, do que pelo exercício pleno das atribuições e competências que integram o seu poder moderador.
Por exemplo, e no que aqui nos traz - a Lei do Orçamento de Estado para 2012 -, as discordância afloradas pelo Presidente da República, que iam no mesmo sentido dos fundamentos da decisão do Tribunal Constitucional, não o levaram a vetar o diploma, nem a suscitar a apreciação prévia da sua constitucionalidade.
Restam, assim, os tribunais, para colocar o Governo no seu exacto lugar e não o deixar crescer para alturas que a Constituição não admite.
Por isso esta primeira impressão – como disse, favorável.

2 – Já quanto à substância, ou quanto ao fundo, a decisão do Tribunal ficou aquém do devido.
Foi amplamente dissecado, na imprensa, ao longo dos últimos tempos, o texto do acórdão e debatidos os seus fundamentos.
Toda a gente hoje sabe o que é o princípio da igualdade e em que medida o Tribunal Constitucional o considerou violado pela Lei do Orçamento: quer pelo tratamento desproporcionado dos trabalhadores que desempenham funções públicas, quer pelo facto de o Governo ter optado, mais uma vez, pelo sacrifício dos rendimentos do trabalho, deixando de fora do esforço de consolidação orçamental os rendimentos e a acumulação do capital.
Não vou, portanto, voltar a esse tema.
Porém, o pedido efectuado por um grupo de deputados, suscitando junto do Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade do confisco, para além da referida violação do princípio da igualdade, invocava igualmente a violação do princípio da confiança, também consagrado na Constituição Portuguesa.
Na lógica da petição, a Lei do Orçamento violara esse princípio, ao impor o corte dos subsídios de férias e de Natal aos reformados e pensionistas.
Na verdade, aqui a violação dos direitos individuais é mais funda, na medida em que quem já se encontra reformado pagou, quer à Caixa Geral de Aposentações – no caso dos trabalhadores do Estado -, quer ao Centro Nacional de Pensões – nos casos dos trabalhadores do sector privado -, durante 36 ou 40 anos de vida activa, as contribuições devidas pela lei, quer sobre vencimentos e salários, quer sobre o montante dos subsídios de férias e Natal.
E se, em abstracto, sempre se pode dizer que quem não está bem que se mude e que, portanto, se os trabalhadores do Estado no activo considerarem ferido no seu núcleo essencial o sistema retributivo do seu trabalho podem mudar para o sector privado, tal não pode passar-se com os reformados, que já não estão a tempo nem em idade de iniciar uma nova carreira no activo, descontando as suas contribuições para uma entidade mais séria e cumpridora do que o Estado.
Os juízes do Tribunal Constitucional não avançaram na apreciação da violação deste princípio.
Fizeram mal, na minha perspectiva, nomeadamente porque a apreciação desse ponto poderia conduzir a uma decisão do Tribunal que conferisse efeitos à declaração de inconstitucionalidade já em 2012, sendo aliás certo que o Tribunal deixou no texto do acórdão uma nota en passant, considerando ser essa uma situação na realidade distinta e mais complexa do que o confisco dos subsídios aos trabalhadores do Estado no activo.
Como já aqui disse várias vezes nestas crónicas, a situação do confisco aos reformados é idêntica à dos tomadores de seguros, que, sempre tendo pagado pontualmente o prémio anual exigido pela companhia de seguros, vissem esta, uma vez verificado o evento – o acidente de viação, o incêndio, a morte … - pagar-lhes apenas parte do montante contratado.
3 – Não obstante, como disse, todo o debate já havido a propósito dos cortes dos subsídios aos trabalhadores do Estado e do acórdão do Tribunal Constitucional, há, todavia, um ponto do argumentário do Governo e dos seus ideólogos e companheiros de percurso que merece análise crítica.
É o argumento dos “privilégios” de que beneficiariam, comparativamente aos do sector privado, os trabalhadores do Estado, no que lembra irresistivelmente o aparato retórico de José Sócrates, de má memória, relativamente a juízes, professores ou outros sectores, de acordo com a velha técnica de desqualificação de um segmento ou sector da população, antes de o atacar nos seus direitos e estatuto, a fim de lograr apoio popular do resto da população para esse ataque.
Nessa perspectiva, foi emblemática a prestação, na televisão de que é agora comentador e visita assídua, do Dr. Eduardo Catroga – que, do alto do seu salário mensal, no sector privado, de 45.000 euros, que deve ao actual Governo e que acumula com uma pensão de 9.600 euros, veio atacar o Tribunal Constitucional e defender que Governo deve manter as baterias assestadas nos trabalhadores do Estado, pelos privilégios de que estes gozam relativamente ao sector privado.
A crónica vai longa, pelo que voltarei a este ponto em próxima ocasião, demonstrando que são falsas e pouco sérias – ou devidas a ignorância - as razões que Eduardo Catroga veio debitar à televisão.
Até a OCDE o veio desmentir.
Mas o que choca é, num Governo que tem de ser exemplar na lealdade da comunicação, o retorno à velha habilidade de voltar uns grupos sociais contra os outros, para melhor os atacar.
Há que não ir nesse canto.
Como Bertold Brecht escreveu, a seu tempo:
“Primeiro, levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro/
Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário/
Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável/
Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho o meu emprego/Também não me importei/
Agora levam-me a mim/Mas já é tarde./Como eu não importei com ninguém/Ninguém se importa comigo.”

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2012-08-14



















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