Visto do avesso

1 - Terminei já, quinze dias mais cedo do que é habitual, as minhas vindimas.
Este ano fiz obras na adega, lavei as paredes de pedra, mudei a canalização e a rede eléctrica e cimentei o chão, que era em terra – para facilitar o trabalho, por um lado; e, por outro, para aumentar as condições de higiene, a ver se este ano escapo à triste sina que, por minha culpa, me tem estragado o vinho, nos dois últimos anos.

Antes das obras, foi necessário arrumar a loja, preparando-a para a intervenção dos pedreiros, revendo e deitando fora muita da tralha que o tempo acumulara e que a falta dele não permitira antes sanear.
É sempre necessário, antes das obras, como se sabe, levar a efeito essas operações preliminares, de limpeza e desmontagem, assim permitindo, sobre os escombros, proceder depois à reconstrução.
Como escreveu em verso o meu primo Luís Miguel Queirós, “precedem sempre a obra/ pequenas demolições/ a que, na sombra, /só o coração assiste” – As Imagens Dominantes, Exercício de Dizer.
Gosto sempre de vasculhar – e faço-o volta e meia – essa tralha que fui deixando para trás e que fui amontoando no sótão ou na loja, tralha onde está muita da vida que vivi e que por isso resisto a deitar definitivamente fora.

Como se esses pedaços de vida continuassem agarrados a tais vestígios físicos que os testemunharam e precisassem deles para não fugirem de vez da memória que cada vez mais vertiginosamente nos leva as lembranças para nenhures.
É por essa razão que, como escreve o Luís Miguel, o coração (nos) assiste nestas peregrinações interiores – e é também por isso que, depois de arrumarmos essa tralha para as obras, continuamos a não deitar nada fora – antes nos limitamos a guardá-la noutro sítio da casa e a deixá-la no mesmo sítio da alma.
Peço desculpa aos meus leitores por este excurso mais interior, num registo tão desviado do tom geral destas crónicas: em boa verdade, em vez de vasculhar as lojas sobre esta revisita aos desvãos da alma, melhor faria – pensarão os meus leitores – melhor faria, e mais ao tom do tempo, em escrever sobre o vasculho aos caixotes do lixo, que hoje constitui o dia a dia – ou a noite - de tantas pessoas nas nossas cidades.
Vasculham o lixo, não para alimentar estados de alma, mas muito mais prosaicamente para matar a fome do corpo – cujas dores, dizia Pascal, são piores de suportar do que as da alma.

2 – Entre os papéis que agora revi, encontram-se muitos jornais.
Entre eles, uma edição do PÚBLICO, de 4 de Setembro de 1992 – fez, há cerca de um mês, 19 anos.
Rememorado as razões que terão levado esse exemplar do jornal a aparecer-me no meio dos meus velhos e esquecidos papéis, verifico que essa data corresponde às últimas obras que fizera na casa – a ao último Verão que nela passei, faz quase 20 anos.
Por lá ficou, então, depois de lido … e esquecido.

Retiro, da 1ª página, à esquerda e ao fundo, a seguinte chamada, sob o título “PS desafia Jardim sobre a Madeira”: “Aproveitando as movimentações madeirenses mais recentes, o PS vem agora chamar a si os louros de ter lançado o debate sobre o défice democrático na ilha de Alberto João Jardim. Numa declaração ao PÚBLICO, o porta-voz do Secretariado Nacional do PS, Arons de Carvalho, acusa Cavaco Silva de manter sobre o assunto um silêncio “já não possível”. Ontem, Jardim convocou os jornalistas para anunciar uma declaração de guerra à “frente radical de esquerda liderada pelo PS”.

Nada mudou, em 20 anos.
Cavaco Silva era então Primeiro Ministro – mas o seu silêncio e omissão sobre o estilo, o modo – e os modos -, a gestão em geral do Governo da Madeira já merecia, nessa ocasião, a mesma apreciação crítica sobre o magistério do Presidente da República – ou a falta dele - que faz hoje praticamente a unanimidade dos comentadores independentes.

O silêncio de Cavaco sobre as tropelias da Madeira já não era possível, dizia o PS, em 1992; hoje, quase 20 anos do mesmo silêncio depois, e com o titular a residir em Belém, esse silêncio é, na verdade, intolerável.
Também o défice democrático, então invocado, regressa hoje à ordem do dia, por ocasião das eleições regionais do próximo fim de semana.

É certo que, em matéria de défice, o défice democrático disputa hoje a primazia com o défice propriamente dito, o défice das contas públicas da Região da Madeira: um e outro sem conta nem medida que caiba na nossa compreensão.
(Já tenho dificuldade em imaginar com consistência o que seja um milhão de euros – quanto mais os 6 mil milhões em que vai o défice hoje. Amanhã se verá que novo buraco aparece …) .

O PÚBLICO do passado fim de semana fez para os seus leitores um exaustivo mapa das ligações entre o aparelho político do PSD-Madeira e o Governo, as empresas regionais, a advocacia, as autarquias, os órgãos de comunicação social, as adjudicações de obras públicas, os clubes de futebol.
Tudo em circuito fechado, tudo correndo e tudo ficando entre os mesmos personagens: poder (mas poder efectivo, que não se brinca em serviço), negócios, dinheiro … muito dinheiro.

Contrariamente ao que se passa no Continente, os titulares de cargos políticos não estão inibidos de contratar negócios privados com o Governo a que pertencem, nomeadamente na adjudicação das obras públicas, nem de acumular pensões com vencimentos públicos, ou estes com a remuneração das administrações das empresas regionais.
Quer dizer, o dinheiro que vai ser confiscado ao nosso subsídio de Natal, ou o fundo de pensões dos bancos, que vão servir para pagar o défice da Madeira, não vão só cobrir o despautério de obras excessivas ou inúteis – isto é, pagar a conta da gestão descontrolada do Governo Regional e da perpetuação de Alberto João Jardim no cargo.
Não.

Vamos pagar também os avultados lucros pessoais, eticamente ilegítimos, arrecadados pela clique do poder regional – e que são todavia legais, à luz da legislação que, para protecção dessa clique, a Assembleia Regional tem produzido, recusando acompanhar as medidas que a Assembleia da República tem tomado sobre incompatibilidades ou sobre a ética republicana.
E cuja devolução não lhes vai ser exigida – pois são legais, como oportuna e antecipadamente foi decidido, com a conivência do legislador nacional.

3 – Governados há mais de 30 anos pelo mesmo personagem, os madeirenses nunca gozaram o prazer sem medida - que, no Continente, temos feito por merecer -, que é correr com os governos, uns atrás dos outros, vê-los pelas costas, marcando-os com o selo da precaridade que é a nossa melhor garantia de cidadãos livres.
Há em cada um de nós uma criança anarquista que nesses momentos exulta.
(Estamos ainda longe da perfeição belga, há mais de um ano sem Governo – e sem lhe sentir a falta.
Pelo contrário, como marcam os índices de desenvolvimento desse País.)
Com o primor do défice das contas e das tentativas para o ocultar, a situação que hoje a Madeira de si própria apresenta não é, pois, diferente da que o jornal de há 20 anos, que agora me veio parar às mãos, já então mostrava.

Não preciso de guardar jornais, para lembrar, mais tarde, como era a nossa vida colectiva nos dias de hoje.
A própria realidade se repete, e com tal grau de aproximação e identidade que sei que o que é hoje uma notícia sobre o nosso País – uma notícia triste, como são todas – vai ser igualmente notícia, nos mesmos termos, daqui a uns anos.
Vou precisar de continuar a guardar papéis velhos, ou de coligir apontamentos pessoais, ou conservar alguns objectos que evoquem uma memória mais nítida, mas apenas daqueles que só a mim digam respeito – pelo lado de dentro, da alma ou da saudade.

É que, contrariamente à vida exterior, que sempre se repete, os momentos da minha vida que tais objectos evocam, esses não voltam mais.
Para que não sumam de vez, ao menos da memória, lá ficarão em depósito, no meio do pó e das traças.
Até que novas obras os desvendem outra vez e aticem de novo as lembranças que transportam consigo.

Sá de Miranda já sabia dessa diferença entre o que nos corre por dentro e o que nos cerca por fora: “Tudo é seco e mudo; e de mistura/também fazendo-me eu fui doutras cores/ e tudo o mais renova: isto é sem cura.”

Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2011-10-08



















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