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“Por vezes adormecem, nas palavras. 
Quando à lareira sentamos a família, 
se dissermos “o pai”, como que paira 
uma penumbra. E inclina 
-se ao sono o peso da cabeça branca
que enevoa a cozinha. 
Então, por dentro do silêncio, a casa 
o corredor ilumina 
que leva ao quarto aonde ainda a cama
apenumbra a almofada adormecida. 
Havermos dito “o pai” chamou à alma, 
um costume da paz e de família.” 
Vou buscar ao livro de Fernando Echevarría, “Sobre os Mortos”, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 1991, o título e o poema com que começo a crónica de Novembro, o mês que a nossa tradição assinalou como o da mais presente evocação dos mortos. 
Os textos do livro são, todos eles, sugestivos de um ambiente de presença sensível dos mortos no correr dos nossos dias e dos nossos trabalhos. 
Às vezes, os textos invocam uma presença que é quase física, como sucede no poema inicial da crónica – que corresponde, como creio, a uma experiência que é familiar a todos: “… Quando à lareira sentamos a família, se dissermos “o pai”, como que paira uma penumbra…” 
O registo dos poemas é maioritariamente rural – como se fosse a vida dos campos mais propícia, pelo seu ritmo sereno e natural, a ouvir melhor esse rumor que de si os nossos mortos nos fazem circular por dentro. 
“Pelos fins de Setembro é que os defuntos/assarapantam as lojas./Vêm haurir ao vinho o escuro/bafio da memória./E o anfractuoso paladar do estudo/que se nutre da luz de cada coisa./Que, após a morte, conhecer é um mundo/aonde cada uma, além da própria,/vê a solidão romper dentro de tudo/e a expandir-se a inteligência à volta./Mas, antes disso, é pelo roxo escuro/e pelo vinho que se apura a sombra/e esse ritmo difícil que os defuntos/se espantam de encontrar na luz das lojas.” 
Tenho para mim como certo que, após a morte, não deixarei de acompanhar os trabalhos de vindima das videiras que plantei, de sentir o cheiro e vigiar a fermentação do mosto e que a minha sombra há-de acompanhar os meus de perto na prova do vinho novo. 
É também agora o tempo dela. 
A sabedoria antiga, assente no ritmo dos trabalhos da terra, fez honrar o S. Martinho com a prova do vinho novo, com que culmina o ano agrícola, poucos dias após a festa de Todos-os-Santos e a evocação dos defuntos. 
É reconfortante a ideia de que, por estes dias, os antigos iluminam de penumbra os lagares e as lojas que foram o lugar dos seus trabalhos. 
E nos preparam o vinho – como nos prepararam a vida. 
2 - Não é da exclusiva tradição cristã esta ideia – esta esperança, ou fé, ou certeza, depende de cada qual – de que, depois de morrermos, alguma luz de nós subsiste, além da lembrança. 
E de que essa luz é ainda algo que tem a nossa marca, que mantém a nossa identidade. 
Os últimos dias têm sido marcados por uma acesa polémica, a propósito do último romance de José Saramago – Caim. 
O debate não tem tido tanto que ver com a personagem do Livro do Génesis, tendo saltado do fratricídio de Abel por Caim para a questão mais ampla de saber qual o registo adequado para a interpretação da narrativa bíblica - histórico ou metafórico. 
Não pretendo aqui entrar no debate sobre saber se a Bíblia é ou não um manual, no sentido normativo do termo, e se é de bons ou de maus costumes – que é também por onde a conversa anda. 
Fico também de fora quanto à dúvida no que respeita à verdadeira motivação do tom incendiário com que o escritor marcou as suas declarações – e se foi apenas marketing, ou algo mais. 
O que retive como sendo o ponto central nas posições de Saramago foi a extrema violência do discurso sobre a intervenção divina na história dos homens – em aparente contradição com o ateísmo que para si convoca, que mais depressa deveria conduzir ao indiferentismo do que ao ataque (a que inexistente alvo?). 
Saramago tem 87 anos – e não é insensibilidade dizer que, pela ordem natural das coisas, está mais perto do fim do que do início da vida. 
Tenho para mim que lhe há-de ser penosa a ideia de que a centelha de luz que o fez escritor e criador de tantas personagens se apague para sempre com a sua morte e suspeito que muitas vezes o há-de invadir a dúvida e a perplexidade sobre o que para si poderá haver depois dela. 
Essa perplexidade e essas dúvidas aumentam com a idade, como é natural. 
Creio que é contra essa ideia de fim absoluto – única compatível com a sua visão do mundo – que a sua natureza por vezes se revolta. 
Foi o que principalmente aconteceu desta vez. 
3 – 
“Os mortos aconchegam-se, no outono, 
aonde, sendo mais secas, 
as folhas juntam o pródigo tesouro 
da tristeza…” 
“A conversa é que os reúne 
perto da sebe…” 
Sobre que conversam? 
Bom tema para um novo romance. 
Henrique Rodrigues 
Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta 
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