HENRIQUE RODRIGUES

Social-democracia(?)

1 - Dizia-se, a seu tempo, do guterrismo, que era social-democrata na economia, liberal quanto ao funcionamento do sistema político e conservador nos costumes.

O mundo deu multas voltas – e Portugal outras tantas -, desde o final da década de 90 do século passado, quando António Guterres liderou este País.

A começar pelos costumes, que mudaram muito, nestes vinte e tal anos que nos separam do Governo de Guterres: legalizou-se o aborto, após o chumbo no primeiro referendo, então realizado (como o da regionalização, como estamos lembrados, na mesma época); consagrou-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo; alterou-se profundamente o regime da procriação medicamente assistida; debate-se o instituto da adopção, por referência às novas modalidades de família; discute-se a constitucionalidade da chamada gravidez de substituição; até chegarmos ao pormenor de o Ministério da Educação produzir um controverso despacho sobre o direito de escolha do acesso às casas de banho das escolas por parte dos alunos que mudaram de sexo.

Grande parte das alterações verificadas têm como fundamento uma visão mais progressista dos direitos humanos, indo em muitas situações o legislador mais longe do que é a própria prática social relativa aos tópicos referidos, assumindo o risco da fractura com essa prática anterior – razão pela qual esses temas têm recebido o qualificativo de “fracturantes” no âmbito do debate público.

É de justiça reconhecer que a introdução e o desenvolvimento de tais temas no espaço público é em larga medida tributário das propostas do Bloco de Esquerda, formação política ainda no seu início durante a fase final do Governo de Guterres, mas que tem crescido sustentadamente desde então, identificando e dando consistência a um eleitorado urbano com escolarização superior à média, desiludido com as políticas públicas associadas até então aos partidos da chamada esquerda e sensíveis a tais novas causas – que poderíamos chamar “modernas”.

Essa inovação da agenda partidária veio a converter grande parte da corrente que se considera mais à esquerda no seio do Partido Socialista, que a adoptou como sua, e que hoje mal se distingue do Bloco de Esquerda, num caldo cultural comum que constituiu certamente parte do cimento da “geringonça” – no que ao Bloco de Esquerda respeita.

Embora essa harmonização cultural deva igualmente muito à gerência partidária e governamental de José Sócrates, que encontrou nas causas fracturantes o mecanismo compensatório da contaminação e apropriação do Estado e das suas instituições pelo mundo do capital e da finança que, para nossa vergonha colectiva, levou porfiadamente a cabo durante o seu consulado esse ex-Primeiro Ministro – e que só pode significar a submissão aos interesses da direita mais reaccionária.

O que nos permite concluir, para voltar à trilogia de Guterres, que uma visão progressista nos costumes não implica idêntica qualificação nos demais registos referidos.

2 – A social-democracia, no que ao funcionamento do sistema e das relações económicas respeita, é geralmente associada à preocupação que devem assumir as políticas públicas, no sentido de que os efeitos do livre funcionamento do mercado, no mundo capitalista, causador da exclusão de muitos cidadãos, devam ser prevenidos ou atenuados, colocando-se o Estado ao lado da parte mais fraca: os mais desfavorecidos, os trabalhadores, os desempregados, os pobres, os que não podem ter habitação condigna …

Foi o que restou como herança da origem obreirista dos partidos sociais-democratas, no século XIX – de onde provieram os diversos partidos comunistas que tanto influenciaram a vida da Europa ao longo do século passado: desde o Partido Operário Social-Democrata Russo (cuja facção bolchevique deu origem ao Partido Comunista Russo – e, depois, da União Soviética) ao Partido Social Democrata da Alemanha (que, através da Liga Spartaquista, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, deu origem ao Partido Comunista da Alemanha).

Mas, mesmo após as fracturas entre a via revolucionária e a via reformista do movimento operário, representando a social democracia moderna a via reformista – ou “revisionista”, a partir de Bernstein e de Karl Kautsky (o renegado Kautsky, como lhe chamava Lenine), do Partido Social Democrata Alemão-, a visão principal continuava a ser “um Estado ao serviço dos trabalhadores”, no sentido de atingir o patamar de uma sociedade sem classes, da herança marxista, através de reformas progressivas no quadro de um sistema político democrático-liberal.

Foi esta perspectiva que marcou a social-democracia moderna – perspectiva que pode seguramente dizer-se ser ainda hoje que define o pensamento social-democrata: um sistema progressista, visando a eliminação das desigualdades não provenientes do mérito individual, através de reformas que favoreçam esse desígnio de fundamental igualdade e que protejam os mais desprotegidos pela vida ou pela fortuna – num quadro de liberdades públicas, mas de relações económicas reguladas e protectoras dos mais fracos.     

Voltando a Portugal, pode dizer-se que essa vinculação ao ideário social-democrata tem constituído a trave mestra dos sucessivos Governos que nos têm pastoreado – na medida em que, desde 1974, todos os Governos assentam no predomínio, ora do PS, ora do PSD, que expressam cada um deles a sua pertença e esse espaço ideológico.

É certo que muita gente, quer de outras bandas partidárias, quer mesmo da própria, suspeita da fidelidade do PSD a essa afirmada vinculação.

Mas a história do Partido, desde o próprio fundador, Francisco Sá Carneiro, até à componente de tradição republicana e oposicionista que esteve na sua origem – Emídio Guerreiro, Artur Santos Silva, Olívio França, José Augusto Seabra, Helena Roseta, Miguel Veiga, Jorge Sá Borges, Coelho dos Santos, entre outros -, e passando pelo seu actual líder, Rui Rio, é seguramente compatível com essa matriz social-democrata que é invocada.

3 – Também o PS – mas esse com reconhecimento geral – se inscreve no pensamento político social-democrático, estando mesmo filiado na Internacional Socialista, que agrupa, a nível mundial, os partidos políticos da área do socialismo democrático e da social-democracia.

Mas nem sempre a prática política, quando incumbidos de governar, quer do PSD, quer do PS, é compatível com os valores da social-democracia e com os seus destinatários.

Ao longo dos anos, procurei, nestas crónicas, zurzir com devoção o que me foram parecendo más práticas sob Durão Barroso, ou Santana Lopes, ou Sócrates, ou Passos Coelho, ou sob António Costa.

Vou manter o estilo. Por exemplo: por exemplo: o Verão foi marcado pela (afinal desconvocada) greve dos motoristas de matérias perigosas.

O Governo tem seguramente melhor informação do que a minha; mas para mim foi meridianamente claro que os patrões pagam aos trabalhadores um salário base fictício, baixo, sob o qual incidem as contribuições para a Segurança Social, a que acrescem alcavalas, a título de subsídios diversos, que constituem remuneração efectiva mas sobre a qual os patrões – e os trabalhadores também, não pode ser doutro modo – nada descontam.

Quando os trabalhadores estiverem de baixa, ou se reformarem, o subsídio de doença e a pensão de reforma são calculados em função da remuneração base – a tal que é escassa.

É para mim claro que é justa a reivindicação de que o que é salário seja tratado como salário.

Por outro lado, compreendo os esforços do Governo no sentido de recuperar as dívidas de contribuições devidas à Segurança Social e de lutar contra a evasão contributiva nesse mesmo sistema – até para garantir a sua sustentabilidade futura.

Não tenho dúvidas de que a prática de ocultar salários sob a rubrica de subsídios não tributados representa evasão contributiva.

Isto é, os trabalhadores grevistas tinham razão para a greve, esgotadas que se encontravam as hipóteses de negociação, por recusa da Associação dos patrões.

Não consigo descortinar qualquer vestígio do ideário social-democrata na opção do Governo por se ter colocado, objectivamente, do lado dos patrões.

4 – Um dos factos mais relevantes da actual pré-campanha eleitoral para as legislativas foi a conversão do Bloco de Esquerda à social-democracia, anunciada pela sua líder.

Trata-se de uma conversão de peso: herdeiro da tradição leninista (PSR, trotskista, e UDP, maoísta), que, no início do século passado, representou a fractura bolchevique com o movimento social-democrata (menchevique), esta reconfiguração do nosso mais recente partido com vocação de poder parece reservar-nos o papel de unificação das correntes revolucionárias e reformistas do movimento operário – o que seguramente será mais uma das originalidades portuguesas.

O BE deve ter concluído o mesmo que eu: se a social-democracia é que nos tem governado desde 1974, se é da social-democracia que os eleitores gostam, então, se há ambição de governar, há que ser social-democrata.

Mas impõe-se tirar do fenómeno todas as consequências, e abandonar o postulado leninista do papel omnipresente do Estado nas nossas vidas.

A começar pelo cumprimento da Constituição (reformista), no que toca ao sistema de protecção social e do papel do Sector Solidário como pilar desse sistema.

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2019-09-11



















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