HENRIQUE RODRIGUES

Golas altas

1 - Neste ano da graça de 2019 comemoram-se os cinquenta anos de vários feitos e vários factos – ocorridos, pois, em 1969 -, de grande importância para o desenho, a complexidade e as esperanças dos tempos que vivemos.

No Outono de 1969, fui eu para Coimbra, estudar Direito – no rescaldo da chamada Crise Estudantil, que só pode ser chamada crise por ter sido o prenúncio de uma profunda mudança criadora, traduzida, poucos anos mais tarde, no derrube do fascismo e na implantação e consolidação da democracia.

Já com alguma experiência no movimento associativo juvenil dos liceus do Porto, o que recordo com saudade desses anos mágicos é do que com verdade se pode chamar o “ar do tempo”.

Apesar do fascismo e da PIDE, dos informadores, das prisões e dos processos disciplinares, a cidade universitária era uma espécie de microcosmos, um mundo à parte, onde a regra era a democracia e o ar que se respirava era o da liberdade – e a esperança certa de virmos a ter em breve um País limpo e civilizado.

Era o velho mundo que estava a dar as últimas; prenunciando-se um tempo novo, jovem e livre.

Por esses dias, também na América de Richard Nixon centenas de milhar de jovens se juntavam em Woodstock, no primeiro festival de música do modelo que ainda hoje preenche os meses de Verão da juventude cá da terra, a cantar com Joan Baez “Whe shall overcame” - importando para os movimentos de contestação política à Guerra do Vietname que marcaram essa década prodigiosa dos anos sessenta a causa dos direitos civis da população negra dos Estados Unidos e, a partir dela, a da igualdade essencial de todos os seres humanos.

Toda esta movimentação política das camadas mais jovens e politicamente mais empenhadas do mundo ocidental foi fortemente tributária do fenómeno que constituiu o Maio de 1968, em França, designadamente nas universidades de Paris.

“Ni dieu, ni maître” – era a palavra de ordem que bem podia resumir, com a simplificação que qualquer resumo implica, a rejeição, quer do princípio da autoridade, quer da ciência livresca que então constituía – como creio que ainda constitui – o modelo de ensino nas universidades.

(Ainda recordo as aulas de um “lente”, que repetia de cor, ponto por ponto e palavra por palavra, o que escrevera décadas antes e deixara para a posteridade na “sebenta” – de cujo texto não se desviava um milímetro nas aulas, sem precisar de “ponto”.)

 

2 – O francês Maio de 1968 deixou, no entanto, outras heranças icónicas, noutros domínios.

Por exemplo, no vestuário.

A mini-saia, nas raparigas, e as camisolas de gola alta, quer para raparigas, quer para rapazes, ficam também como imagem de marca desses tempos – e associados à transgressão comum nas várias linguagens de expressão do corpo e do espírito.

(Quando fui para Coimbra, em Outubro de 1969, ainda era obrigatório os alunos irem para as aulas de camisa e gravata.

Dois colegas meus, numa aula do primeiro ano, foram postos fora da sala, com a ordem de irem vestir-se devidamente, por se terem apresentado desengravatados.)

Ainda tenho no repositório de fotografias desse tempo alguns retratos meus, com o pescoço tapado por uma gola de malha, que fazia parte de uma camisola – gola que se podia desenrolar, para, por exemplo, tapar a cara nas manifestações vigiadas pelas “autoridades”.

As golas da Autoridade Nacional de Protecção Civil não são bem como essas que usávamos nos anos 60 e 70.

Não trazem camisola junta.

São só gola.

É certo que também servem para tapar a cara nas manifestações.

E, pelo ar que corre, em que qualquer contestação é vista como perturbação da “paz que felizmente nos rege”, sob a sábia batuta de quem governa, não é característica a menosprezar.

(Os motoristas que o digam.)

Mas parece que não servem para mais nada de útil – e não foi para tal efeito certamente que o Governo promoveu a sua compra.

Não obstante, foram mais de 300.000,00 euros pagos à empresa adjudicatária – e previamente convidada pela ANPC a apresentar preço.

O Governo veio tentar tapar o sol com uma peneira, a pretexto de tais golas não serem inflamáveis – como a Oposição e os jornais começaram por dizer, em jeito de crítica – mas apenas “perfurantes”.

Como se isso atenuasse o escândalo.

É que, na verdade, a questão não é essa.

As golas tanto são inúteis se arderem, como inúteis são, se perfurarem.

Mas, então, se é assim, quem se lembrou de as comprar – deitando, não propriamente para o lixo, mas para um seu equivalente (as mãos de um “empresário” amigo) mais de 300.000,00 euros?

E tal empresário, que constituíra a empresa apenas 6 meses antes da compra das golas e que nenhuma experiência tinha em negócios do fogo, foi convidado porquê?

Por estar ligado ao partido do poder, como está comprovado?

Até parece que a necessidade do negócio apenas surgiu como pretexto para dar uns “dinheiritos” a ganhar ao confrade …

Ou que a “ empresa” foi criada para aproveitar as oportunidades dos negócios da política ..

(A propósito, ainda não sabemos quantos empregos, para pessoas que não forem da família, criou esta empresa …)

Mas o critério das ligações partidárias não consta do Código dos Contratos Públicos …

 

3 – Uma das coisas que ficámos a dever à Troika e ao Governo de Passos Coelho foi o de um reforçado escrutínio pelo povo da despesa pública inútil e em mero favorecimento de interesses particulares e também da denúncia da corrupção.

Com efeito, metidos no coração de uma tempestade financeira, causada em grande medida por gente sem escrúpulos, que se apossou do Estado e dos seus recursos, com a cumplicidade de muitos políticos, os portugueses, ao passar pelas privações dos anos do ajustamento, passaram a ser muito mais exigentes com a forma como os Governos administram o dinheiro que nos extorquem nos impostos.  

Os últimos tempos do Governo de Passos Coelho foram de sucessivos desvendamentos dos desmandos ocorridos anteriormente, em primeira linha durante os Governos de José Sócrates – de que a Operação Marquês constitui o mais elucidativo exemplo. 

Nessa medida, o ar ficou mais limpo.

No entanto, e após quase 4 anos de tranquilidade governativa, com assinalável paz social e apoio quase generalizado – do Presidente da República à liderança da Oposição -, os meses mais recentes parecem ressuscitar os velhos demónios dos favores, da ganância e da arrogância, que pensávamos ter arremessado às profundas.

Este episódio das golas “que não ardem mas perfuram” – recordando o estilo de José Sócrates, de fazer o mal e a caramunha, e de tentar fazer-nos passar por parvos -, a que se soma a mais recente adjudicação de esferográficas e bonés, como se faz nas campanhas partidárias, urgente para dispensar o concurso público, de par com a comprovada influência de um titular de cargo político nestes “negócios”, começa a parecer-se demais com esses tempos sinistros que o Primeiro-Ministro tenta, e bem, fazer esquecer.

Mas para poder esquecer é mister, primeiro, não esquecer.

Para prevenir que se repitam …

 

Data de introdução: 2019-08-16



















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