ASAS SANTO TIRSO

(Re)Inserir na Trofa

«Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses». A frase é atribuída a Salazar, no ido ano de 1935, e espelha bem a cultura de consumo de vinho que há muito impera em Portugal. De tal forma, que o consumo de vinho e de outras bebidas alcoólicas, muitas das vezes de forma abusiva e bastante precoce, é socialmente aceite, pouco condenável e em muitos contextos até incentivado.
Em sentido contrário, o consumo de estupefacientes, ou drogas ilícitas, apesar de recentemente ter sido descriminalizado, é uma prática altamente condenada pela sociedade, até porque, em muitas situações, acarreta comportamentos socialmente desviantes e marginais. Por outro lado, a utilização de drogas clinicamente autorizadas usufrui da mesma bonomia social que as bebidas alcoólicas, apesar de ser reconhecido o consumo abusivo e exagerado por grandes faixas da população e mesmo considerado um problema pela comunidade médica.
A verdade é que tanto o alcoolismo como a toxicodependência são problemas transversais à sociedade portuguesa, que não escolhem classes sociais, nem géneros, e que atinge populações cada vez mais jovens. Provavelmente, a grande diferença está nas condições e acesso a tratamentos, que afecta maioritariamente as populações mais desfavorecidas. Ainda para mais, sabendo-se que a abstinência é crucial e a sua manutenção um processo longo, muitas das vezes até ao fim da vida.
Serve isto para introduzir um projecto que tem como destinatários ex-toxicodependentes e ex-alcoólicos de comunidades carenciadas, que se encontram em processo de tratamento e de reinserção social, promovido pela ASAS - Associação de Solidariedade e Acção Social de Santo Tirso e dinamizado pelo Centro Comunitário da Trofa (CCT).
O projecto «(Re)Inserir na Trofa» nasceu em 2009 e surgiu de um diagnóstico feito a nível nacional pelo IDT – Instituto da Droga e Toxicodependência, em que “o concelho da Trofa foi considerado uma área lacunar a nível de tratamento e prevenção das toxicodependências”, explica a educadora social Natércia Rodrigues, coordenadora do projecto no CCT.
Através do estudo do IDT foram identificados na Trofa 183 toxicodependentes que não tinham qualquer tipo de acompanhamento, sendo que as respostas mais próximas, através dos CAT (Centro de Atendimento a Toxicodependentes), eram no Porto, Braga e Matosinhos.

ALCOOLISMO NÃO ASSUMIDO

E se o problema da toxicodependência era antigo, mas de dimensão desconhecida até ao estudo do IDT, já a problemática do alcoolismo no concelho era uma realidade bem conhecida das técnicas do CCT.
“Antes de este projecto existir, no Centro Comunitário da Trofa já tínhamos a funcionar um grupo de auto-ajuda para alcoólicos”, revela Maria do Céu Brandão, directora do Serviço Social da ASAS, que acrescenta: “O alcoolismo é um problema de grande dimensão no concelho, com muito maior incidência do que as drogas, e quando nos deparámos com isso avançámos junto da população que frequentava o Centro para esse grupo de auto-ajuda”.
Aproveitando as candidaturas abertas pelo IDT, o Centro concorreu com um projecto de reinserção, denominado «(Re)Inserir na Trofa».
Apesar de espoletado pelo deserto de apoios aos dependentes de drogas, a instituição aproveitou para alargar a ajuda e acompanhamento aos casos de alcoolismo, até porque dos actuais 36 frequentadores do projecto, 23 são ex-alcoólicos e 13 ex-toxicodependentes.
“O alcoolismo, logo à partida, não é um problema assumido, daí também ser maior a dificuldade e um maior desafio para nós chegar a esta população, porque é um problema mais aceite pela sociedade e mais escondido no seio familiar”, sustenta Natércia Rodrigues, ao que Maria do Céu Brandão acrescenta: “Pelo acompanhamento que fazemos das famílias apercebemo-nos que é um problema de grande dimensão. Não estaria muito errado dizer que em 90% das famílias que acompanhamos este é um problema declarado ou encoberto, porque a maior parte das pessoas não o assume”.
Esta ideia é reforçada pela assistente social Maria João Oliveira, coordenadora técnica do CCT: “No âmbito do acompanhamento que fazemos dos processos de Acção Social e de Rendimento Social de Inserção (RSI), o alcoolismo é uma das temáticas que está bem presente na dinâmica das famílias do concelho da Trofa. Na maioria dos casos não é considerado um problema e o hábito do consumo de álcool está bastante enraizado e associado às refeições, o que é tido como um hábito normal”.

AMOR PELOS FILHOS ACCIONA MUDANÇA

A manutenção da abstinência através da formação pessoal e social, com vista à sua integração social, familiar e profissional é o grande propósito do projecto, que vive muito do apoio da instituição, mas essencialmente da vontade dos frequentadores.
“O curioso é que o amor pelos filhos, mais do que por outra coisa qualquer, é o que vai movendo muitas destas pessoas. Esse é o clique que os faz avançar para mudar de vida”, revela Maria do Céu Brandão e explica: “Normalmente estas pessoas são acompanhadas na área social, com processos no RSI ou nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens e, normalmente, uma das medidas, diagnosticado o problema, é o tratamento e a abstinência. Alguns processos, principalmente quando envolve menores, são processos em que as pessoas se consciencializam que têm que mudar ou correm o risco de a família se desmoronar, ou seja, de perderem os filhos”.
A entrada no «(Re)Inserir na Trofa» dá-se com o tratamento já em fase adiantada. “Podem não estar completamente abstinentes, mas já estão numa fase de tratamento ou pelo menos já estão acompanhados numa consulta que existe na Trofa, promovida pelo IDT, ou por outros serviços de saúde”, explica a coordenadora do projecto, que considera igualmente importante o acompanhamento dado pelo CCT “para assegurar a redução de consumos até à completa abstinência”.
Há ainda os que chegam ao projecto pela mão de instituições parceiras do concelho, “nomeadamente para o encaminhamento e a sinalização de situações que acompanham ao nível social e que têm esta medida associada”, adianta Natércia Rodrigues, que sublinha ainda o único caso de um utente que chegou voluntariamente, mas apareceu uma vez e… “nunca mais voltou!”.

VOLTAR A APRENDER A ANDAR

Pelo projecto já passaram cerca de 80 pessoas, na esmagadora maioria com problemas com o álcool, mas a fidelização ao projecto é ainda fraca, fruto das idiossincrasias das próprias problemáticas e dos contextos sociais e familiares.
“O problema é a fidelização e a responsabilização de cada um para a participação no projecto e verem-no como uma resposta efectiva para a sua recuperação. Nem sempre é fácil e, como nunca tinha existido nada do género, estas pessoas não estavam habituadas a terem respostas para elas e também tiveram que se adaptar. Sempre houve uma entrada e saída de utentes, mas temos um grupinho que se fidelizou, de cerca de 16 pessoas, muito fiéis ao projecto, às actividades, ao centro comunitário, à ASAS e aos colegas, que já consideram amigos”, explica Natércia Rodrigues.
Já para a directora do Serviço Social da ASAS todo o processo de recuperação e reinserção é “como aprender a andar novamente”. “Este vai-vem dos utentes tem muito que ver com o acreditar, e isso demora algum tempo, que é possível mudar de vida, ficar abstinente durante um período longo de tempo, as pessoas olharem para eles de forma diferente, ter um relacionamento de igual para igual com as outras pessoas, mas quando se começa a acreditar que com algum apoio, porque a força para mudar tem que estar neles, é possível a mudança, é como uma bola de neve”, argumenta Maria do Céu Brandão.
Actualmente frequentam o «(Re)Inserir na Trofa» 31 homens e apenas cinco mulheres, quase todos entre os 40 e os 50 anos, que no âmbito do projecto se reúnem três vezes por semana para uma aula na piscina, e por vezes no ginásio, participarem no grupo de auto-ajuda e ainda no atelier de culinária, que, no fundo, são almoços-convívio em que os utentes é que organizam e fazem tudo, numa actividade que tem sido fundamental para a criação de laços de amizade e a aquisição de competências sociais.
Umas das lacunas que ainda subsiste, mas não está ausente do projecto, é a inserção profissional, pois dos 36 frequentadores, apenas dois trabalham.
“Os restantes são desempregados de longa duração, em que os consumos estiveram directamente relacionados com o desemprego”, refere Natércia Rodrigues.
“Uma missão que está sempre presente neste processo é a inserção sócio-profissional, mas primeiro começámos pela inserção pessoal, social e familiar. E há muitos cuja inserção no mundo de trabalho, pela condição débil de saúde, será muito difícil e nesses casos nem é o que nos preocupa, embora seja sempre um fim último nas pessoas com condições e capacidades para, a curto ou médio prazo, virem a integrar o mundo do trabalho”, explica Maria do Céu Brandão, que revela estarem a ser desenvolvidos contactos com instituições e entidades do concelho para, mesmo que de modo voluntário, sejam encontradas ocupações para estas pessoas.
Em tempos perdidos para a vida e, na maioria, marginalizados pela sociedade, hoje os frequentadores do «(Re)Inserir na Trofa» recuperaram a dignidade, fruto do apoio do Centro Comunitário da Trofa, mas fundamentalmente pela enorme força de vontade de mudar de vida e, acima de tudo, de voltar a… viver com um sorriso nos lábios e a esperança no olhar.

FAMÍLIA DECISIVA NO SUCESSO

José Santos, 43 anos, desempregado, casado e pai de cinco filhos. Até há quatro anos, alcoólico.
Domingos Claro, 46 anos, padeiro/pasteleiro desempregado, casado e pai de dois filhos. Até há três anos, toxicodependente.
José e Domingos são dois casos diferentes no percurso e na dependência, mas semelhantes no sucesso no seio do projecto «(Re)Inserir na Trofa». Em ambos os casos, o fim da dependência teve na família o grande impulsionador.
“Por causa da droga a minha vida começou a descambar”, começa por contar Domingos Claro, que durante oito anos foi proprietário de uma Padaria/Pastelaria, que vendeu por causa da droga, mergulhando de seguida na heroína e na cocaína até que… “a mulher me pôs fora de casa”, recorda, ao mesmo tempo que confidencia: “Foi um período muito difícil para os meus filhos, que até tiveram que andar no psicólogo”. Depois de dois tratamentos e uma recaída e um grave acidente de viação que o atirou para o hospital pelo meio, Domingos está limpo há três anos, mas: “Estou em recuperação todos os dias. O problema está comigo e estar na ASAS lembra-me que tenho que lutar contra isso todos os dias”.
Por seu turno, José Santos lembra que “desde pequenino” sempre bebeu, tal como o pai que “bebia muito”. Epilepsia e tuberculose são apenas dois dos problemas de saúde que o afectam e impedem de encontrar um trabalho permanente, depois de vários trabalhos temporários. Também para este natural de Ribeirão, mas a residir na Trofa, o papel da família foi fundamental para deixar o vício. “A minha mulher sentia-se muito mal e os meus filhos também, porque eu quando bebia perdia as estribeiras”, confessa, sustentando que a sua vida “mudou muito” desde que não bebe: “Estava sempre no café, não me interessava a família e andava sempre metido em zaragatas. Agora não e passo muito mais tempo com a família”. Para José, que foi reduzindo o consumo até à abstinência, “estar ocupado é muito importante para não ir para o café” e, nesse capítulo, o projecto é óptimo: “É um grupo muito unido, os outros ajudam-me muito e a Dra. Natércia é muito compreensiva”.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2012-03-22



















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