EDITORIAL

Corresponsabilidade na esperança

1. Com a sua gravidade chocante, a crise actual veio tornar ainda mais visíveis dramas sociais já antigos e provocar outros que pareciam de todo improváveis. A crise não só tornou mais patentes as grandes carências de pessoas e famílias, já pobres e excluídas, como aumentou, gravemente, o número dessas pessoas que, por via do desemprego, perderam os seus níveis de rendimento e o seu estatuto social, caindo em situações que, outrora, não imaginavam possíveis. Por esse ou outros motivos, mas sobretudo por esse, aumentou, a um nível preocupante, o número dos “novos pobres” forçados à humilhação de se exporem, uma situação que muitos têm dificuldade quase inultrapassável de superar.

Seria insensata a pretensão de sumariar aqui os diferentes problemas que afectam as populações do nosso país. Por um lado, abundam os estudos, as notícias e os comentários a este respeito, e, por outro, surgem, a cada dia, novas situações merecedoras de toda a atenção. Mas não podemos dispensar-nos de reflectir sobre as causas gerais desses problemas, sem prejuízo do atendimento diário de cada pessoa e família em situação de carência.

Entre as causas mais visíveis, realçam-se: interesses poderosos incontroláveis, nacionais e transnacionais, a desregulação dos mercados, a livre circulação de capitais, a competitividade sem limites, a cultura e a prática das desigualdades sociais, a insuficiência do diálogo e da concertação, a promoção do consumismo, a rejeição da sobriedade e da poupança... Todas estas realidades persistem ainda hoje e, mais grave do que isso, parece que a maioria das forças sociais e políticas não se compromete na sua erradicação efectiva. Por um lado, parece até que se pretende superar a crise sem intervir nas suas causas. Por outro lado, muitas forças que pretendem essa intervenção quase se limitam à contestação sistemática da ordem vigente, sem formularem propostas consistentes e sem experimentarem, na acção, as suas opções.

Como causa e consequência de tudo isto, a boa governação do país e do mundo acha-se dificultada, em simultâneo, pelos grandes interesses, que a condicionam, e pela contestação sistemática. A contestação sistemática do paradigma dominante parece visar uma outra dominação, que não esclarece em que consiste; daí resulta um verdadeiro círculo vicioso de ingovernabilidade. Até certo ponto, as forças dos grandes interesses e da contestação sistemática actuam como aliadas no objectivo comum da ingovernabilidade.

Dentro da mesma lógica, a reflexão mais comum sobre crise acha-se inquinada pela ancestral abordagem maniqueísta; procuram-se culpas em vez de causas, diligenciando identificar culpados, sobretudo os «grandes culpados». Normalmente, cada pessoa e cada força política ou social identifica-se com a bondade e transfere para outrem, adversário ou inimigo, todo o peso da maldade sociopolítica. Deste modo, a crise económico-financeira suscita um alijamento crescente de responsabilidades, a rejeição do «outro» e a «desconstrução» da esperança.

2. No caminho inverso, o da construção da esperança, não podem ser ignorados os avanços conseguidos ao longo dos séculos e, especialmente nas últimas décadas: a democracia, a generalização do acesso ao ensino, a permanência do Estado social, a segurança interna, a cooperação no âmbito da União Europeia e na esfera internacional... Aos contestatários sistemáticos da vida política nacional, deve recordar-se, como positivo, que todos os partidos representados na Assembleia da República têm defendido o Estado social, embora cada qual a seu modo. Recorda-se também que uma parte significativa das dificuldades orçamentais resulta do grande objectivo humanista de protecção social e de educação. E, a propósito, recorda-se ainda que o financiamento público tem sido decisivo na diminuição da taxa de pobreza. Assim, Portugal, apesar de todos os motivos de desencanto, figura entre os cinquenta países «mais desenvolvidos» do mundo.
Em maior ou menor grau, todas as forças sociais, políticas e morais, toda a economia e toda a sociedade civil têm contribuído para os avanços conseguidos.


3. Corresponsabilidade, na esperança, é o desafio que nos interpela, em cada dia. Na verdade, todos somos corresponsáveis, em maior ou menor grau, pelas causas da crise e pela sua superação. Na corresponsabilidade assumida constrói-se a esperança e abrem-se caminhos mais gratificantes às gerações futuras.

Na construção da esperança, todas as políticas e todas as actuações dos agentes políticos, económicos, sociais e culturais são chamadas a intervir. Tendo em conta várias tomadas de posição, salientam-se, entre essas políticas e actuações, as que dizem particularmente respeito: à regulação justa da economia e dos mercados financeiros, a nível mundial, da União Europeia (UE) e nacional; à manutenção, aprofundamento e adaptação do «modelo social europeu» e do Estado social; à estratégia de desenvolvimento para toda a UE e, especialmente, para o nosso país; ao combate às desigualdades sociais e esforço sistemático para a erradicação da pobreza; à promoção do desenvolvimento local e nacional, do «terceiro sector», sem fins lucrativos, e ao desenvolvimento da democracia económica; à reforma do conceito de empresa, nomeadamente nas vertentes da participação interna e da responsabilidade social, salvaguardando sempre o cumprimento da legislação; à interacção crescente e sadia dos sectores público, privado e cooperativo e social.

Todos os cidadãos, suas instituições, empresas e outras organizações são sujeitos activos e destinatários da corresponsabilidade; e esta configura-se mais justa se tiver a pessoa humana no centro das suas motivações.
Defende-se a criação de uma cadeia solidária de protecção social, com esta ou outra designação. Não se vê, nela, mais uma prestação do sistema de segurança social, mas sim um dinamismo permanente de solidariedade local e nacional. Baseada nas relações informais e institucionais, esta cadeia solidária teria como centro cada pessoa e família carenciadas; estas seriam co-autoras e beneficiárias da acção local, reforçada pela nacional.

A gravidade extrema da crise actual e a nossa corresponsabilidade perante ela tornam imperioso que o diálogo social, a negociação colectiva e a concertação desempenhem um papel fundamental em todos os níveis e sectores. Será através do diálogo, da negociação e da concertação que os diferentes interesses e pontos de vista procederão ao esclarecimento mútuo e à procura dos entendimentos possíveis. Quanto mais se avançar nesta procura de entendimentos e se preservar o respeito mútuo, mais se viabiliza a superação da crise e do desenvolvimento integral.


Lino Maia, Presidente da CNIS

 

Data de introdução: 2011-12-11



















editorial

TRANSPORTE COLETIVO DE CRIANÇAS

Recentemente, o Governo aprovou e fez publicar o Decreto-Lei nº 57-B/2024, de 24 de Setembro, que prorrogou, até final do ano letivo de 2024-2025, a norma excecional constante do artº 5ºA, 1. da Lei nº 13/20006, de 17 de Abril, com a...

Não há inqueritos válidos.

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

A segurança nasce da confiança
A morte de um cidadão em consequência de tiros disparados pela polícia numa madrugada, num bairro da área metropolitana de Lisboa, convoca-nos para uma reflexão sobre...

opinião

EUGÉNIO FONSECA

A propósito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza
No passado dia 17 de outubro assinalou-se, mais uma vez, o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Teve início em 1987, quando 100 000 franceses se juntaram na...