1. Para trás, parece terem ficado algumas euforias, como a da liberdade, da instauração da democracia, da entrada no “clube dos ricos” (União Europeia), da moeda única. Foram as euforias de alguns anos que, sendo legítimas, por vezes nos terão afastado da nossa realidade…
Agora, o tempo é de crise. E parece que está para durar.
De todos os lados vão aparecendo profetas a sentenciar que já há muito a tinham adivinhado: eram os aumentos imparáveis dos bens essenciais, foi o disparar do preço dos combustíveis, é a crise financeira e será algo mais que estará para vir. Mas não pode ser ignorado que também é uma crise de valores: crise que se avolumava na mesma medida em que eles se abandonavam.
Por quantificar estarão as consequências. Inimagináveis, certamente.
Alguns vão decretando que o futuro gerado nesta crise será bem diferente de um passado que a gerou. A ver vamos.
Mas não será difícil de prever que, desta vez, serão muitos os afectados pela crise e que alguns não deixarão de tirar dividendos dela. Muito provavelmente, os mais culpados passearão incólumes e alguns até com ela poderão beneficiar. Como sempre, ou quase sempre.
Até nós, neste recanto europeu, que estávamos como que a viver num país por vezes apresentado como sendo o das maravilhas, não deixaremos de ser atingidos por mais esta crise. Já estaremos habituados, mas de bom grado a dispensávamos.
Mas como a crise é global, talvez haja quem imagine que ela não nos atingirá sobremaneira e que os outros que a provocaram não deixarão também de a solucionar.
Para mais, nós até nos estávamos a portar quase bem e “quase” saíamos de um estado depressivo de uma longa crise.
Um “quase” para além das eternidades…
2. Se as euforias geram depressões, também é verdade que as crises poderão favorecer renovados devotamentos.
Também entre nós eles se imporão. Certamente.
Por exemplo, se quisermos que da crise nasça uma nova aurora, será importante que se estabeleça uma espécie de tabela de valores a assumir e a respeitar. De cidadania, de percurso, de convivência e de integralidade. Uma tabela a encimar a dos direitos e deveres e com enquadramento nos projectos educativos, políticos e sociais. Com serena determinação.
O momento é este. Adiá-lo será temeridade.
Aquele que foi dogmaticamente apresentado como valor supremo – o da lei do mercado – já se revelou inconsequente e talvez inumano.
Depois, ou ao mesmo tempo, impõe-se uma mais aprofundada reflexão sobre a economia e a actividade económica. As suas metas deverão ser o crescimento integral da pessoa humana, de toda a pessoa humana e de todas as comunidades humanas e a respectiva harmonização entre elas, pelo que o seu móbil não poderá continuar orientado unicamente para a desenfreada produção e para o desumano, alienante e inebriante consumismo. O império do homem deverá suceder ao império do mercado. Com abrandamento consumista, aprofundamento de valores e reajustamentos retributivos.
De uma vez por todas se imporá que tudo seja equacionado em favor do homem no seu todo e de todos os homens. Para que o homem tenha futuro e o futuro seja humano.
3. Inevitavelmente, a crise também afectará o sector da economia social solidária. Também aqui se imporão alguns devotamentos já que são ingentes os desafios. Como sempre, quantos se dedicam à solidariedade não deixarão de abraçar os novos desafios com ousadia, talento e arte.
Para que sobrevenha uma aurora de renovada esperança. Para as pessoas que são a sua razão e o seu único fim.
Nesta crise, dar lugar à ousada solidariedade, não será tanto dar asas a uma natural tentação expansionista, tão comum em épocas consumistas. Antes será dar mais atenção e prioridade aos que mais facilmente serão afectados pela crise. E entre esses, lá estarão as crianças, os idosos e todos aqueles que são atingidos por alguma deficiência. Talvez, mais do que antes, aos habituais utentes se deverão associar os ocasionais ou eventuais, que provavelmente não estarão tão próximos mas precisarão que deles se aproximem tanto as instituições como a solicitude dos seus solidários dirigentes.
Depois, talvez se imponha um novo esforço de cultura da solidariedade. Também entre os utentes e os candidatos à utilização dos equipamentos sociais: se as nossas instituições deverão privilegiar os mais necessitados, também não deixarão de abrir as suas portas a outros com mais capacidades e que ali poderão exercitar a solidariedade. Com transparência e com moderação. Mas certamente com palco para uma maior justiça social. A pluralidade de situações é inclusiva e a solidariedade é construtiva. Essa também será uma via que se abrirá ao desafio da sustentabilidade, com efeitos na autonomia e na superação da crise e com benefícios na consolidação de um sector. E a crise apontará a opção por uma maior comunhão entre as instituições, também essa com benefício para a sustentabilidade.
E, em tempo de crise, novas oportunidades pedirão novas e ousadas respostas.
Claro que alguns dogmatismos terão de ser articulados com inovada moderação. Talvez tenham mesmo de cair. Entre eles, o da excessiva burocratização a pretexto da pretendida e necessária qualidade e o das rígidas normas que afastam o voluntariado, o exercício da cidadania e o envolvimento das comunidades na procura de melhor futuro para os seus membros.
* Presidente da CNIS
Data de introdução: 2008-11-05