1 – Escrevo no rescaldo das eleições para as autarquias locais, ocorridas no dia 12 de outubro.
Os resultados não acompanharam as tendências que vinham marcado os processos eleitorais mais recentes, designadamente no que respeita a eleições legislativas.
Com efeito, a repetição sucessiva – e porventura excessiva - de eleições para a Assembleia da República, na sequência das diversas dissoluções do Parlamento que marcaram o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, essa repetição – repito - tinha trazido consigo dois fenómenos convergentes para o aparente declínio da democracia liberal sob a qual felizmente temos vivido: a fragmentação da representação parlamentar, por um lado; e, por outro lado, o esmorecimento dos partidos tradicionais, que ao longo de 50 anos vinham alternadamente constituindo a base de sustentação dos sucessivos governos, esmorecimento traduzido principalmente no quase desaparecimento do CDS e na perda significativa do eleitorado dos partidos que, praticamente desde a promulgação da Constituição de 1976, asseguraram o rotativismo no exercício do poder executivo: o PS e o PSD, o chamado “centrão” – que, com o CDS, constituíram a trindade que ficou conhecida como o “arco da governação”.
Este “arco da governação” só viu alargado os seus limites quando o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda, sob a mão de António Costa e através da Geringonça, acederam à proximidade das soluções de Governo – do 1º Governo de António Costa.
A referida fragmentação e o enfraquecimento dos partidos do centro político foram acompanhadas pelo ascenso vertiginoso de um novo partido, colocado na extrema-direita do hemiciclo parlamentar – o CHEGA -, que se afirma contra o “Sistema”, nome sob o qual designa a democracia constitucional liberal que foi instaurada pela Revolução de 25 de Abril de 1974.
2 – Os resultados das eleições autárquicas de ontem fugiram do figurino que tem marcado as mais recentes eleições legislativas.
E fugiram no bom sentido.
Não se cura aqui de saber de preferências partidárias ou de afinidades ideológicas.
Ganhou quem o povo quis que ganhasse.
Mas há fenómenos que, resultando embora da expressão dos votos, como que ultrapassam as opções particulares que esses votos traduzem.
Como primeiro exemplo, verificou-se que grande número de candidaturas, que saíram vencedoras do sufrágio, eram constituídas por cidadãos independentes, sem obediências ou constrangimentos partidários – o que permite concluir pela justeza da alteração legislativa que, há alguns anos, alargou e simplificou a possibilidade de candidaturas independentes.
Com efeito, uma das explicações que têm sido dadas para o fenómeno do aparente declínio da democracia representativa radica na alegada falta de qualidade dos representantes, designadamente dos deputados, cuja maioria os eleitores não conhecem, e cujas qualificações para o serviço público são igualmente desconhecidas ou inexistentes – uma vez que as respectivas carreiras decorrem inteiramente no mundo dos corredores partidários, criando vinculações e compromissos que contaminam o exercício das funções representativas.
Uma das lições das eleições autárquicas do dia 12 de outubro bem pode ser o da conveniência do alargamento às eleições para a Assembleia da República da possibilidade de cidadãos independentes se poderem candidatar em condições de igualdade ao privilégio de representar os seus concidadãos no exercício do poder legislativo.
Um outro fenómeno que as eleições de ontem desvendaram foi a da recomposição do chamado “bloco central”, significando o reforço das votações conjugadas do PS e do PSD, fundamentalmente à custa do refluxo eleitoral do CHEGA.
Essa conjunção dos dois principais partidos do Regime tinha sofrido um forte abalo nas últimas eleições legislativas, designadamente tendo deixado de constituir o quórum para as alterações à Constituição.
O jornalista Manuel Carvalho, no “Público” do dia seguinte às eleições, explica, com forte expressividade, essa lição: “Nas terras de Portugal, escolhem-se os melhores, os que merecem mais confiança, não rostos distantes … Muitas das vitórias e das derrotas explicam-se mais pelo perfil dos candidatos do que pelo apego a doutrinas e programas – também por isso há tantos presidentes eleitos por movimento de cidadãos… estas eleições são uma prova da força da democracia local. Há no municipalismo, na autonomia das vilas e cidades, um bastião de resistência ao extremismo radical da direita populista que vale a pena enaltecer. A proximidade e a capacidade de responder às necessidades das pessoas ainda são o maior antídoto contra o vírus da demagogia e da pulsão iliberal.”
3 – O novo Presidente da Câmara da minha terra, o dr. Pedro Duarte, no rescaldo das eleições, terá afirmado que “O Porto… não elegeu só um novo presidente da câmara, elegeu um novo líder para o Norte de Portugal, … uma voz que se vai levantar contra o centralismo exacerbado do país.”
Está bem o propósito. Porém sucede que, à face da organização administrativa do território, o Norte de Portugal não existe; embora não haja campanha eleitoral desde há 30 anos a esta parte em que a promessa de regionalização administrativa não conste do catálogo das promessas.
Sempre em vão!
O ritual tem sido o seguinte:
PS e PSD consideram que tal reforma administrativa, porque fracturante, terá de merecer o acordo de ambos os partidos.
Assim, quando o PS comanda o Governo, o PSD é contra a regionalização; dizendo o PS que é a favor; mas, quando se aproximam novas eleições, o mesmo PSD, esquecendo que bloqueara tal reforma durante o mandato cessante, inclui tal reforma no programa de candidatura às mesmas eleições.
Mas, se ganhar as eleições e formar Governo, depressa o PSD meterá no saco das violas tal audaciosa promessa - até às eleições seguintes.
É então altura de o PS desenterrar a promessa do baú – para a voltar a enterrar nas eleições subsequentes.
Quando é a vez de ser o PSD a comandar o Governo, repete-se o procedimento, mas invertem-se as posições: é sempre o outro que defende o adiamento dessa reforma, quando está no governo; reclamando contra o boicote do outro partido, quando na oposição.
Durante os últimos 10 anos, os dois referidos partidos nem precisaram da pantomina; a oposição do Presidente da República fez o mesmo efeito.
Fernando Gomes, Rui Rio e Rui Moreira, em seu tempo, levantaram-se contra esse “centralismo exacerbado”, em defesa do Norte.
Mas esse pecado capital continua a marcar as desigualdades que empurram o País para trás.
(“Mas temo-me de Lisboa/que ao cheiro desta canela/ o reino nos despovoa.” – Sá de Miranda)
Diz quem sabe …
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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