Duas grávidas perderam, com um intervalo de uma semana, os seus bebés depois de procurarem uma resposta de urgência num hospital público. Num dos casos, segundo o apuramento dos factos divulgado, o Centro de Orientação de Doentes Urgentes do INEM tentou durante uma hora encontrar uma urgência obstétrica disponível, tendo acabado por encaminhar a grávida para uma maternidade a uma distância que implicava uma hora de deslocação.
Estes factos minam gravemente a confiança dos cidadãos na resposta em situação de urgência, uma das áreas mais vitais de um serviço público de saúde. E ocorrem num domínio da saúde especialmente sensível e delicado.
As responsabilidades concretas sobre como foi possível a resposta demorar tanto, sobre como pode acontecer que nenhuma urgência da especialidade próxima esteja disponível, sobre quais as causas concretas dos acontecimentos, serão apuradas em averiguações próprias e específicas. Mas há no que ocorreu um outro nível de factos a apurar. Para confiarmos no nosso serviço público de saúde temos de estar seguros de que as articulações entre serviços ocorrem adequadamente, de que os recursos necessários estão a ser mobilizados, de que há quem saiba onde estão os problemas e esteja a agir para que eles sejam prevenidos e para que os seus efeitos sejam mitigados.
Um cidadão que observa a reincidência dos disfuncionamentos do serviço nacional de saúde vira-se inevitavelmente, nesta situação, para o que diz a tutela. Esta, até agora, limitou-se a uma resposta burocrática sobre cumprimento de protocolos, uma resposta que revela menosprezo pela responsabilização dos titulares dos cargos públicos pela comunidade, perante a qual os membros do governo respondem sobre a qualidade e os resultados dos serviços que tutelam.
A responsabilidade política não tem a ver com quem toma decisões concretas num caso concreto. Aí mede-se a responsabilidade dos intervenientes. A responsabilidade política é um dever geral de responder perante a comunidade pelos atos, omissões e decisões tomadas ou não que possam contribuir para que um problema não tenha sido evitado ou para que os seus efeitos não tivessem sido devidamente mitigados, tem que ver com o dever de garantir, entre outros, a manutenção de resultados coletivos aceitáveis numa área política que se tutela.
Os resultados que está a conseguir o Ministério da Saúde nos governos de Luis Montenegro, dirigido desde o primeiro dia desses governos por Ana Paula Martins, não são aceitáveis. A garantia da resposta de urgência em saúde materno-infantil fez parte do Programa do XXIV Governo. As carências das equipas de urgência, em particular de Obstetrícia e Pediatria na Região de Lisboa e Vale do Tejo são conhecidas e o problema foi reafirmado pelo Programa do XXV Governo Constitucional. Os acontecimentos de que aqui falamos são novos, mas não as vulnerabilidades que a ele estão associadas. O Governo tem conhecimento das raízes do problema e é sua a responsabilidade de gerir os recursos, com os constrangimentos existentes, para que as tragédias não ocorram. É essa a origem da sua responsabilidade política.
A Ministra da Saúde tem óbvia responsabilidade política em tragédias a que a situação nas urgências esteja associada e a ela e só a ela cabe identificá-las e assumi-las. Pode decidir que a sua responsabilidade não implica a sua saída do cargo e explicar-nos em que se fundamenta. Mas não pode dizer que a responsabilidade política por acontecimentos passados se assume agindo para prevenir eventos futuros. Nem sequer pode refugiar-se na ideia de que a sua missão termina quando o Primeiro-Ministro entender. A Ministra não é uma funcionária do Primeiro-Ministro, tem uma responsabilidade perante a comunidade, perante nós, que é individual e apenas e só sua. A responsabilidade política não começa quando se perde a confiança de outrem. São dois processos totalmente distintos na sua génese e na sua natureza, ainda que se misturem, nomeadamente quando um titular de cargo político não assuma a responsabilidade que lhe é devida.
A responsabilidade política é individual e indelegável, é um ato próprio e específico comandado pela consciência. Fugir desse julgamento de consciência é uma irresponsabilidade. Uma irresponsabilidade política.
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