PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

O estatuto de cuidador informal necessita de ser revisto

Os cuidadores informais com estatuto reconhecido eram menos de 15 000 em julho, segundo os dados do Instituto de Segurança Social[1]. Destes, 61% eram considerados cuidadores principais e apenas 58% dos cuidadores informais recebiam uma prestação mensal, cujo valor médio era de 351,30 euros, como noticiou a Lusa[2].

Estes dados contrastam com os de um estudo noticiado em 2023 pelo Expresso, da autoria da Escola Nacional de Saúde Pública, que referia a existência de 827 mil cuidadores informais em Portugal[3] e ainda mais com a estimativa de que 13% dos residentes em Portugal sejam cuidadores informais.

A exiguidade dos cuidadores que têm estatuto reconhecido torna difícil acionar os direitos dos cuidadores, que na sua esmagadora maioria acabam por não estar reconhecidos. Não apenas os cuidadores principais carecerão, assim dos apoios que a lei já lhes abre em matéria de proteção social, como também os cuidadores não principais ficarão arredados das possibilidades que se lhes abrem formalmente, no Código do Trabalho, de recurso a licenças para cuidado.

A Lei 100/2019, de 6 de setembro, que reconhece o Estatuto do Cuidador Informal, foi um enorme passo em frente, porque pela primeira vez conferiu proteção aos cuidadores informais. Ficava reconhecido pela primeira vez, o trabalho invisível de muitas mulheres e alguns homens na prestação de cuidados. Um trabalho que sabemos exigente, emocionalmente desafiante e particularmente intenso. Um trabalho que era invisibilizado por um conceito de família tradicional que o considerava uma obrigação familiar e não um trabalho. Mas os dados sobre a implementação do Estatuto deixam claro que ele não está a chegar à grande maioria dos cuidadores e deve ser, por isso, revisto.

A avaliação da implementação da medida, cujos resultados foram apresentados em 2021, produziu recomendações úteis para a melhoria do funcionamento do atual regime[4]. Mas as recomendações não incidem sobre alguns aspetos que me parecem essenciais do estatuto e que importa ter presentes para que se adeque melhor às necessidades e à realidade dos cuidadores. Olhemos aqui para alguns desses aspetos.

O conceito de cuidador informal principal não cobre a realidade dos cuidadores a tempo inteiro. Diz o nº 2 do artigo 2º do estatuto que se considera cuidador informal principal o cônjuge ou unido de facto, parente ou afim até ao 4.º grau da linha reta ou da linha colateral da pessoa cuidada, que acompanha e cuida desta de forma permanente, que com ela vive em comunhão de habitação e que não aufere qualquer remuneração de atividade profissional ou pelos cuidados que presta à pessoa cuidada.”

Este artigo contém diversas limitações ao estatuto de cuidador informal principal que nada têm a ver com a natureza do cuidado informal a tempo inteiro.

Restringe o acesso a parentes. Mas se há um cuidador que é amigo ou coabitante não parente e que cuida a tempo inteiro, em que pode radicar a sua exclusão? A ideologia familista respeita-se, mas a lei deveria ser neutra em relação ao que não tem a ver com a relação de cuidado.

Os não parentes, mesmo que coabitantes com a pessoa cuidada e cuidando dela a tempo inteiro são relegados para fora da proteção do estatuto de cuidador formal permanente, por mero preconceito ideológico.

O estatuto restringe também o acesso a coabitantes. Mas muitos cuidadores vivem na sua habitação e deslocam-se diariamente para cuidar de outras pessoas. O cuidado permanente não deve ser restringido a cuidado 24h/24 horas, limitando-se o acesso a pessoas que tenham alguma vida própria para além do cuidado.

Veda o acesso a cuidador principal a quem tenha remuneração de atividade profissional. No mundo de hoje há muito trabalho, nomeadamente a tempo parcial e intermitente, que pode ser compatibilizado com o cuidado a tempo inteiro e com vantagens para o cuidador e para a pessoa cuidada.

A limitação do reconhecimento do estatuto a coabitantes é ainda mais gritante quando se refere a cuidadores não principais. É do conhecimento comum e da nossa tradição social, que pessoas se revezem no cuidado de outras não coabitando com elas, mesmo quando são parentes. Porque havemos de desproteger totalmente estes cuidadores?

É preciso progredir e melhorar o nosso regime de cuidado informal. O estudo de outros regimes europeus pode dar boas pistas[5]. Não sendo aqui o espaço para o aprofundar esta questão, deveria olhar-se com particular cuidado para as experiências holandesa, francesa e sueca, em que os cuidadores informais são remunerados pelo trabalho de cuidado de um modo proporcional ao cuidado prestado, sem restrição ao vínculo familiar nem à coresidência e têm apoios à formação para o papel que desempenham. O cuidado informal seria muito mais bem reconhecido e apoiado. Desvantagens? As de quase todas as políticas sociais eficazes. Seria dispendioso.

 

[1] https://www.seg-social.pt/estatisticas-detalhe/-/asset_publisher/GzVIhCL9jqf9/content/estatuto-do-cuidador-informal

[2] https://www.lusa.pt/article/43504698/portugal-tem-quase-15-mil-cuidadores-informais-e-a-maioria-s%C3%A3o-mulheres

[3] https://expresso.pt/sociedade/2023-04-19-Ha-827-mil-cuidadores-informais-em-Portugal-mais-de-metade-nao-recebem-apoio-estao-sozinhos-exaustos-e-desinformados-488546ed

[4] https://www.seg-social.pt/documents/10152/17083135/Relat%C3%B3rio%20Final%20de%20Avalia%C3%A7%C3%A3o%20e%20Conclus%C3%B5es%20%20-%20Estatuto%20do%20Cuidador%20Informal.pdf/b7af9a32-8312-4ff3-a9d6-7c8e718cc30c

[5] A quem se interesse pelo tema, sugere-se começar pela leitura do relatório Informal Care in Europe, acessível em https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/96d27995-6dee-11e8-9483-01aa75ed71a1

 

Data de introdução: 2024-09-11



















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