1. Todos ficámos abalados com os relatos de abusos sexuais praticados por agentes pastorais. São dilacerantes, são muitos os abusadores e são muitas as vítimas.
Um só abusador que houvesse já não nos deixava indiferentes. Mas não foi só um. E foram ao longo de muito tempo. Eram pastores, tinham uma nobre missão, falavam de Cristo como caminho, verdade e vida e eram – e pode ficar a dúvida se ainda são - condutores de homens e mulheres. Deviam esforçar-se por dar bom exemplo, mas falavam com palavras radicalmente contrariadas pelas suas ações. Falharam profundamente. Não são pessoas fiáveis. E o problema é se continuam a falhar.
Indesculpáveis, os abusos deixam pesadas marcas que permanecem pelo tempo nas vítimas e que perpassam ao longo de gerações.
Sejam eles quem forem, os abusadores devem ser veementemente condenados pela sociedade, pelas vítimas que eles fizeram e que poderão continuar a fazer e pelos crimes que cometeram e, eventualmente, poderão continuar a cometer. Escandalizam profundamente cristãos e não cristãos, causam vergonha e repulsa e podem estar a deixar exangues os bons pastores que são a generalidade. Devem ser criminalizados e chamados a indemnizarem as vítimas. Não podendo ser eles a indemnizarem as vítimas, deve ser chamado a assumir tal responsabilidade quem os formou, quem teve pressa em ordenar imaturos em ambiente maniqueísta e quem os enviou em missão sem preparação suficiente, sem maturidade suficiente e sem suficiente visão ética. No caso dos agentes pastorais, foi a Igreja.
Não é a hipótese de poder haver abusadores nas escolas, no desporto ou no seio das próprias famílias que menoriza a gravidade dos crimes praticados por esses agentes pastorais. É evidente que em parte alguma se pode compatibilizar com abusadores. Mas os abusos sexuais praticados por agentes pastorais são mais graves, indesculpáveis e provavelmente imperdoáveis. É que os agentes pastorais apresentam-se como exemplos a seguir, inspiram confiança, lideram comunidades e facilmente seduzem. Quer os abusos tenham ocorrido lá longe no tempo, nos tempos que correm ou nos que hão de vir, ocasionalmente ou reiteradamente, antes ou depois de serem considerados crimes, foram, são e sempre serão repugnantes e inadmissíveis.
2. Às vítimas foi dada voz. Ainda bem.
Aí, a Igreja esteve muito bem. Quis enfrentar a realidade, foi corajosa e quis uma Comissão independente. Não impôs à Comissão um caderno de encargos limitativo e deixou-a percorrer o seu caminho. Tarde? Mais tarde do que seria desejável, mas mais vale tarde que nunca.
Todas as vítimas venceram o silêncio? Provavelmente não, mas os que venceram o silêncio ajudaram a encarar uma realidade. E só haverá conversão se houver coragem para encarar a realidade. E bom será que quem não deu voz ao silêncio venha a usar a sua voz, porque falar, dar eco à raiva, gritar e repudiar pode ajudar a atenuar a dor, a ultrapassar alguns pesadelos e a estancar uma praga. E a Igreja precisa de regeneração para ser a Igreja de Jesus Cristo que, repete-se, é caminho, verdade e vida e esperança por todos os séculos dos séculos.
Agora, tem de ser dada vez às vítimas. Para que às vítimas seja feita a justiça que merecem, se é que alguma justiça apagará definitivamente a sua dor. Mas alguma justiça ajudará a abrandar algumas marcas que não se diluiriam com o andar dos tempos.
A hora é de regeneração e de fazer justiça.
3. Pelos valores que divulga e defende, pelo Cristo que anuncia e perpetua, pelos pastores que seleciona e longamente forma, pela cultura que inspira e consolida e pelas responsabilidades históricas que reclama e tem, a Igreja assume-se como uma referência ética de respeito pela vida e pela dignidade da pessoa humana. Respeito pela vida e dignidade da pessoa, desde a conceção até à morte natural e mesmo para além da morte. De cada pessoa e de todas as pessoas.
Daí o reconhecimento e a valorização não apenas do seu Culto e da sua Evangelização, mas sobretudo do seu agir cristão.
E no agir cristão, em geral, e muito especialmente na área social, a Igreja tem uma longa e rica história. De facto, se nem toda a ação de proteção social dos mais frágeis, dos menores, dos mais velhos e dos que sofrem de qualquer deficiência é desenvolvida pela Igreja ou em seu nome, um facto, porém, é que, nessa área social, a Igreja tem um volume de atividade manifestamente maioritário e qualitativamente muito bom. E essa longa e rica história de ação social tem marcado o ritmo de muitas e de muitos que, podendo não se situarem no espaço da Igreja, reconhecem-lhe autoridade e sentem que o envolvimento de todos na proteção do próximo é um caminho que os humanos devem percorrer para ser prestada uma maior e mais cuidada atenção aos mais carenciados, aos menos dotados e aos mais vulneráveis.
Talvez mesmo mais do que a Liturgia e a Evangelização, essa proteção social que a Igreja desenvolve seja a marca que melhor avalia o seu espaço e a sua importância na sociedade portuguesa.
A história e a sociedade precisam da Igreja e reconhecem a sua importância.
A hora é de uma humilde e corajosa regeneração. Também de mais prudência e de maior vigilância.
Precedidas de alguma inoportuna turbulência, as Jornadas Mundiais da Juventude podem ajudar a Igreja a concentrar-se mais em Cristo que continua e continuará a seduzir multidões de jovens. E a fazer dos humanos o seu caminho.
E, no meio de tudo isto, as Instituições de Solidariedade, da Igreja ou não, devem concordar que nunca será despropositado que, em cada uma delas, haja um provedor do utente. Teoricamente e na prática os dirigentes já o são, mas haver um especialmente destacado para essa missão específica, talvez acautele contra eventuais irregularidades…
Lino Maia
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