Henrique Joaquim estava há dois meses e meio como gestor da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo quando a pandemia o obrigou a suspender o que estava a fazer e direcionar os seus esforços para uma resposta de emergência. Assim aconteceu, com a criação de espaços onde essas pessoas pudessem ficar recolhidas e assim evitar o contágio. O balanço que faz é positivo, porque, apesar das dificuldades foi possível dar resposta e já há quem tenha deixado a rua na sequência deste acolhimento de emergência.
Se a pandemia da Covid-19 atirou muita gente para a pobreza e a todos foi dito para se isolarem e ficarem em casa, a população em situação de sem-abrigo já são os mais pobres dos mais pobres e… não têm casa para se isolar.
Nesse sentido, foi necessário encontrar respostas para uma população que, até para se alimentar, enfrentou grandes obstáculos durante a fase mais aguda da pandemia até ao momento.
“Tivemos um desafio grande com uma situação em que se esteve a dizer a toda a gente para ficar em casa e não podíamos perder estas pessoas. E também não tínhamos forma de manter esse contacto em todos os locais onde essas pessoas estão”, começa por dizer Henrique Joaquim, gestor da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), explicando o que foi feito: “O risco foi corrido, e bem, em tentar criar espaços, com as medidas de segurança adequadas para nos aproximarmos das pessoas e ajudá-las a ultrapassar este período. O risco foi calculado e foi bom, porque foram muitas pessoas acolhidas. Neste momento já não estão todos, alguns já se transformaram outra vez, mas foram 21 espaços, para além dos que já funcionavam, e nesses espaços de emergência foram acolhidas mais de 500 pessoas. A grande maioria delas, pessoas já em situação de sem-abrigo e que fizeram o movimento de procurar ajuda e de se deixar ajudar”.
Henrique Joaquim refere-se a espaços criados propositadamente para acolher pessoas em situação de sem-abrigo para que pudessem também elas evitar o contágio, saindo da rua.
“O passo em que estamos agora, de transição, é o desafio de evitarmos, o mais possível, que estas pessoas voltem à condição de rua. Nesse sentido, estamos a trabalhar com as autarquias e com as equipas locais para encontrar respostas de alojamento, quer de caráter mais definitivo, como as candidaturas do Housing First, que foram aprovadas e que são 13, com capacidade de acolhimento máxima para 324 pessoas. Já no final de junho, abrimos uma candidatura para uma outra resposta complementar, que são as habitações partilhadas”, revela Henrique Joaquim.
Prosseguindo a espécie de balanço sobre o período pandémico, “é quantitativo e vale o que vale, mas tem um aspeto positivo, porque nesta população acolhida houve apenas duas situações positivas à Covid-19”, adianta, congratulando-se: “Isto é extraordinário, porque reflete o bom trabalho feito pelas equipas, que são as autarquias, as IPSS, os voluntários, as equipas de Saúde, etc. Por outro lado, as próprias pessoas em situação de sem-abrigo, no geral, tiveram um comportamento muito adequado e responderam muito bem às regras que lhes foram pedidas”.
A estratégia passou por criar espaços onde as pessoas em situação de sem-abrigo pudessem ficar acolhidas e fossem respeitadas as regras da Direção-Geral da Saúde e dizer-lhes para procurarem essas respostas.
E se, entretanto, foram detetadas mais pessoas a caírem na rua, o foco da ação da ENIPSSA esteve nas pessoas que já viviam nessa situação e que foram as que mais recorreram às respostas propostas.
“A maioria das pessoas que recorreu à ajuda eram pessoas que já viviam na rua, conhecidas e já com algum tempo de rua”, refere, lembrando uma série de outras medidas tomadas pelo Governo no sentido de chegar às outras pessoas que também sofreram fortemente os efeitos da pandemia em termos económicos: “Agora, uma das outras linhas em que o Governo tentou prevenir isso foi ter decretado que o RSI, o subsídio de desemprego e outras medidas de apoio têm renovação automática durante um período que agora foi prolongado. Com isso tentou-se que as pessoas não fiquem sem apoio, mas, por outro lado, protege-las e não as expor a ir aos Serviços. Depois, e já está em vigor, foram agilizados os critérios de acesso ao RSI. Tudo o que são medidas que pudessem garantir apoio às pessoas foi implementado. Neste momento, estamos a investir nesta parte da habitação, mas com apoio, quer no Housing First, em que a Segurança Social financia a equipa técnica, quer nos apartamentos partilhados, em que se financia o utente”.
Sabendo-se que muito do trabalho de apoio às pessoas em situação de sem-abrigo é feito por voluntários, com o confinamento generalizado da população, inicialmente, a situação ficou complicada, por falta de voluntários, mas rapidamente foi retomando a normalidade possível.
“Nas duas primeiras semanas houve, de facto, uma quebra, houve menos voluntários e menos fontes de apoio. Muitas dessas organizações que apoiam as pessoas em situação de sem-abrigo suportam-se no apoio da restauração e com o encerramento dos restaurantes muitas ficaram sem esse apoio. Ao mesmo tempo, a regra era o confinamento e muitos desses voluntários deixaram de ir por receio, o que é compreensível. Em todo o caso, nunca houve uma rutura total. Houve redução, em alguns sítios, como em Lisboa e no Porto, e foi sentida a necessidade de reorganização das equipas. Aqui em Lisboa, por exemplo, houve três organizações que costumam trabalhar separadamente e funcionaram em conjunto, com uma a confecionar as refeições e as outras duas a distribuí-las. Nessa altura, o que se fez foi solicitar o apoio das Forças Armadas, que em Lisboa teve resposta imediata”, recorda Henrique Joaquim, sublinhando: “Hoje a situação está mais normalizada e as organizações já estão a trabalhar com os seus voluntários”.
E apesar das longas filas para o apoio alimentar, o gestor da ENIPSSA explica que muitas dessas pessoas não eram pessoas sem-abrigo: “A distribuição alimentar teve uma elevada procura, mas de muitas pessoas que não estavam em situação de sem-abrigo. Quando se viam as filas enormes não eram na maioria pessoas em situação de sem-abrigo. Não, são de facto pessoas à procura de alimentação, mas que, felizmente, ainda não estão nessa situação de rua. E esperamos que não venham a estar, daí ser necessário tomar medidas de prevenção”.
Desde que tomou posse, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, tem sido o porta-estandarte da erradicação do problema das pessoas em situação de sem-abrigo. Henrique Joaquim reconhece a “enorme mais-valia”, pois trata-se de um fenómeno bastante complexo e que exige uma solução.
“Estamos a trabalhar com um problema social muito complexo e nestes fenómenos, tal como a pobreza, e esta é uma situação de pobreza extrema, ou a exclusão social, se não tivermos uma consciência coletiva forte de que isto é um problema que é vivido por pessoas concretas fica mais difícil de resolver. Ou seja, quanto maior for essa consciência coletiva maior é a probabilidade de encontrarmos soluções para o resolver, porque não há uma solução”, sustenta, acrescentando: “Essa consciência tem crescido com a ação do Presidente da República, porque coloca o problema na agenda, traz outros atores, sensibiliza outras pessoas e estimula sempre. É fácil colocar assuntos na agenda, mas depois eles esmorecem e o PR tem sido um ator muito importante para mobilizar as pessoas. Hoje é um sinal muito positivo assistirmos a discussões na Assembleia da República e vermos num plenário três ou quatro deputados a falar do assunto. Isso é um sinal positivo, porque há uns anos havia apenas uma pessoa que falava no assunto muito de quando em quando e hoje já não é assim”.
Para Henrique Joaquim, “isto é um sinal extremamente positivo de que se está a criar uma consciência coletiva”, lembrando que já há mais pessoas sinalizarem situações, “mas ainda há muita indiferença e muito receio também”.
No entanto: “Isto significa que a consciência coletiva está crescente, ativa e crítica e ter o principal magistrado da nação comprometido com a causa é uma enorme mais-valia”.
Segundo o gestor da ENIPSSA, também dentro do próprio Governo existe esse compromisso, daí todas as medidas terem sido tomadas a uma velocidade bastante grande.
“Há mais do que uma sensibilidade de que há pessoas a viverem este problema e de que é possível, se não resolvê-lo na totalidade, pelo menos reduzi-lo drasticamente”.
Por outro lado, outra mais-valia que Henrique Joaquim identifica é a “presidência portuguesa da União Europeia que se aproxima”, na qual se pretende colocar o assunto na agenda, “porque este não é um problema só de portugueses, há muitas pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal que são estrangeiras e algumas da Europa”.
Com dois meses e meio no cargo, Henrique Joaquim viu toda a agenda e estratégia traçada ser alterada com a chegada da pandemia. Mesmo assim, o gestor da ENIPSSA faz um balanço positivo deste meio ano que leva no cargo.
“O balanço é positivo no sentido de que há coisas a acontecer. A maior dificuldade ou desafio foi a pandemia. Quando entrei em janeiro tinha uma estratégia, quer em termos formais quer em termos de concretização, e estava a executá-la, começando por contactar diretamente muitas equipas no terreno. Esse trabalho teve que ser, de alguma maneira, interrompido, o que obrigou a todo um reajustamento. Em primeiro lugar manter as vias bastante abertas e articular os diferentes serviços”, afirma, sublinhando: “Queremos tão rápido quanto possível, ainda durante o mês de julho, ter pessoas a sair da rua ou a sair dos espaços de acolhimento de emergência”.
Tirar as pessoas da rua é a missão e a pandemia, por paradoxal que possa parecer, já ajudou alguns a saírem de lá.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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