No âmbito da XII Festa da Solidariedade, o Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, acolheu o Encontro Nacional de IPSS, promovido pela CNIS, em que a Cooperação foi o tema em reflexão e debate. O enquadramento constitucional, as bases e os constrangimentos da Cooperação preencheram a agenda do dia de trabalho dos mais de 150 participantes na sessão, que arrancou com uma mensagem motivadora do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues.
Nas conclusões coligidas e comunicadas pelo presidente da CNIS (e que pode conhecer através do Editorial, AQUI), o destaque recai na urgência em “avançar com o processo de revisão legislativa, prevista desde a Adenda ao Compromisso de Cooperação para 2016, tendo como objetivo a discriminação positiva das instituições de solidariedade no quadro fiscalizador e sancionatório, bem como a finalidade de assegurar a sua sustentabilidade, que permanece imóvel”.
O padre Lino Maia reafirmou que, “mesmo perante todas as dificuldades, as instituições não transigirão nunca no que respeita ao cerne da sua matriz: garantir o acolhimento preferencial das pessoas e famílias em situação de maior desfavorecimento”.
Aliás, a questão das dificuldades enfrentadas pelas IPSS foi transversal aos três painéis que preencheram o programa, tendo sido debatida com mais acuidade no painel da tarde que abordou aquilo que são os «Constrangimentos na Cooperação».
O advogado Simões de Almeida comparou a cooperação com o Estado a “um casamento disfuncional” em que o marido (Estado), “porque paga, acha que pode pôr e dispor da mulher” que em casa trabalha e contribui para a harmonia familiar.
“O Setor Social Solidário sofre de violência doméstica, porque a ação do Estado é excessiva”, concluiu, para de seguida elencar os três principais constrangimentos na cooperação: “A falta de confiança do Estado nos parceiros, o excesso de tutela e a falta de respeito institucional”.
E aqui, em certa medida, Simões de Almeida sustentou que da falta de estratégia que por vezes enferma a ação do Estado e seus organismos, surgem casos como os determinações para que as creches passem a ter uma direção-técnica exercida por um educador de infância sem sala, ou o da Prestação Social para a Inclusão e o conflito com a vontade do Estado de que, por exemplo, as pessoas com deficiência não sejam inabilitadas, duas medidas “suspensas, para melhor estudo”, ou ainda o imbróglio e stresse criado com a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados.
Para o causídico, “é fundamental que o Estado ouça quem usufrui dos serviços e quem os presta” para melhor aquilatar o que se está a fazer e a qualidade desses serviços.
Por fim, “para que a cooperação funcione é preciso que a relação entre o Estado e o Setor Social Solidário seja um casamento saudável e funcional e que os filhos, que são os utentes, sejam felizes”, rematou Simões de Almeida.
De seguida, Alfredo Cardoso, presidente da Associação de Solidariedade Social, Cultural e Recreativa de Santa Maria de Braga, um dos dirigentes mais participativos e interventivos nas Assembleias Gerais da CNIS, preferiu usar a metáfora do dono da bola. “O Estado pensa que é o dono da bola e comporta-se como tal”, começou por dizer, mas, no fundo, não é bem assim.
“O Estado e os privados se querem que fiquem com as sobras, porque nós é que somos os donos da bola, porque somos melhores”, afirmou, acrescentando: “Nós temos mérito, mas pouco falta para nos atribuírem um ranking como o que fizeram para as escolas. É a fase seguinte ao ataque que sofremos de dizerem mal de nós!”.
Alfredo Cardoso referiu ainda que “há evolução todos os dias no debate das questões sociais”, mas a não repercussão na realidade prende-se com o facto de que “vão contra o pensamento único estabelecido. E, por isso, defendeu a realização de um entendimento alargado nas entidades e no tempo.
“Devia ser possível colocar em cima da mesa o pacto de regime. A cooperação seria melhor se fôssemos mais unidos e isso poderia passar por um pacto de regime a 12 anos como complemento ao Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social”, defendeu, instigando os presentes “a batalhar por um pacto de regime a 12 anos e pela introdução de um fator de correção na cooperação”.
“Não estamos na ação social como complemento do Estado, estamos no meio do Estado, mas não somos Estado, asseverou, citando, a fechar, Santa Teresa d’Ávila: “A verdade pode padecer, mas nunca perece”.
No final exortou os presentes à união, dizendo: “Por uma cooperação autêntica, unidos venceremos”.
Por seu turno, Jaime Ramos, presidente da Fundação ADFP, de Miranda do Corvo, elencou como principais constrangimentos na cooperação “a desconfiança dos agentes do Estado, a partidarite, que facilita ou complica pela cor política, a excessiva regulamentação e a postura medíocre do Poder Local, que tem medo da concorrência”.
E concretizou, por exemplo, acerca da educação com a “cooperação mínima e a visão estatizante”, com a “concorrência do Poder Local no pré-escolar”, com a “nacionalização/municipalização dos ATL” ou ainda os contratos de associação, dizendo que “negócio é diferente de cooperação”, referindo ainda as comparticipações “insuficientes” no que toca às ERPI ou ainda a falta de discriminação positiva no caso das creches e dos contextos sociais em que se inserem.
Afirmando que o Setor Social Solidário “é um produto da liberdade e democracia”, Jaime Ramos considera que “um futuro brilhante para o país exige capital, empresários e bem transnacionais, mas essencialmente um Terceiro Setor forte”.
Da parte da manhã, Mariana Canotilho, especialista em Direito Constitucional, abordou a consagração na Constituição da República do Setor Social Solidário, alertando que o “peso constitucional do setor é maior do que, muitas vezes, se pensa”.
A professora catedrática lembrou que “muitos especialistas falam sobre a constitucionalidade do Setor Social, mas apenas tocam e fogem”, não aprofundando e não dando seguimento a essas reflexões.
Lembrou a importância do Artigo 82 da Constituição, que no seu nº 4 consagra o setor cooperativo e social e que muitas vezes é esquecido em detrimento do Artigo 63, sustentando, de seguida, que “o Setor Social está entalado entre o Estado e o setor Privado”.
Por isso, para Mariana Canotilho, “é necessário fazer uma ponte entre o modelo inscrito na Constituição e o que acontece na realidade, e isto passa também por uma adaptação do vocabulário para que haja um melhor enquadramento constitucional, e definir o modelo de Estado Social que se quer”.
Por outro lado, a jurista considerou que “são dever de garantia das IPSS os princípios da universalidade e da igualdade” e isto emerge porque “há obrigações decorrentes dos direitos das pessoas, ou seja, dos utentes, porque a relação das instituições com o utente é sempre uma relação com um sujeito titular de direitos fundamentais”.
Seguiu-se o painel sobre as «Bases da Cooperação», que Filomena Bordalo, assessora da CNIS definiu desta forma: “Associei a cooperação a um edifício e as bases ao seu alicerce que é a parte da construção que suporta o peso e mantém fixo e nivelado o prédio no terreno”.
Após uma revisita ao Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, que em dezembro completa 22 anos, Filomena Bordalo reafirmou que “a fiscalização [do Estado] não substitui o acompanhamento técnico”, sintetizando a sua intervenção em 10 bases da cooperação: “Ao Estado, como garante dos direitos sociais, é imposto constitucionalmente o dever de apoiar as instituições e de as integrar no sistema da Segurança Social; o reconhecimento, por parte do Estado, da idoneidade das instituições, bem como da sua natureza particular e, consequentemente, do seu direito de livre atuação e da sua plena capacidade contratual, com respeito pelas normas legais aplicáveis; existência de uma rede de solidariedade e a valorização, por parte do Estado, do trabalho de proximidade das instituições; a responsabilidade das instituições no exercício da ação social, em ordem à otimização das respostas e à rentabilização dos recursos financeiros disponíveis para o efeito, permitindo atender mais pessoas e famílias; a aceitação do princípio de que as instituições devem privilegiar as famílias, os grupos e os indivíduos económica e socialmente desfavorecidos; comparticipação financeira justa, por parte do Estado; a corresponsabilização solidária do Estado no domínio do apoio técnico, por forma a favorecer o desenvolvimento das atividades e a prestação de serviços das instituições; participação das instituições na conceção, planificação, execução e avaliação das políticas sociais, ao nível nacional, regional e local; valorização das parcerias, constituídas por entidades públicas e particulares, para uma atuação integrada junto das pessoas e das famílias; estímulo e valorização do voluntariado social, tendo em vista assegurar uma maior participação e envolvimento da sociedade civil na promoção do bem-estar e uma maior harmonização das respostas sociais”.
A fechar, a assessora da CNIS afirmou que “as instituições são um bem indispensável, não são um mal necessário”.
Completou este painel, Susana Branco, da União das Misericórdias Portuguesas, que abordou essencialmente as dificuldades de relacionamento entre o Estado e o Setor Social Solidário.
Na abertura dos trabalhos, o destaque vai para a mensagem enviada pelo presidente da Assembleia da República, lida aos presentes pelo padre José Batista, da Direção da CNIS.
Dirigindo-se ao presidente da CNIS, em nome da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues começou por saudar o Encontro nacional de IPSS, prosseguindo: “Uma saudação especial porque, como sabe, a solidariedade social é uma das causas da minha vida. Sei bem que as IPSS têm um conhecimento único das pessoas e dos territórios, das suas potencialidades e das suas vulnerabilidades. Não esqueço, quando lancei o Rendimento Mínimo Garantido, o papel que tiveram estas instituições na implementação da medida no terreno, de forma a que chegasse efetivamente a quem mais precisa. O Estado não dispensa o contributo da sociedade civil quando desenha e quando concretiza as políticas públicas. Porque a democracia e o conhecimento da sociedade não se esgotam nos partidos e nos representantes políticos. E porque todos somos poucos quando se trata de responder aos desafios da pobreza e das diferentes formas de desigualdade e exclusão, a todos desejo um excelente Encontro Nacional”.
A fechar os trabalhos, após a intervenção do presidente da CNIS, falou aos presentes, no Fórum Luísa Todi, a secretária de Estado da Segurança Social.
Cláudia Joaquim, para além de reafirmar a vontade e aposta do Governo na cooperação com o Setor Social Solidário, anunciou que está para breve a negociação com a CNIS e demais representantes do Terceiro Setor, uma proposta de alteração do Estatuto das IPSS, elaborada pelo Governo, porque considera que “com a última alteração legislativa, o Estado não consta como parceiro, mas como fiscalizador”.
Nesse sentido, Cláudia Joaquim deu nota que também o Governo parece querer que ganhe força o acompanhamento da Segurança Social às IPSS em detrimento do excessivo papel fiscalizador.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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