O presidente da CNIS encara com naturalidade democrática a mudança de ciclo político que se verificou no país. Nesta Grande Entrevista o padre Lino Maia faz um balanço dos últimos quatros anos em que teve como interlocutores agentes políticos de um executivo de direita. A cooperação aprofundou-se e o setor foi preservado de cortes e constrangimentos. É certo, cumpriu o seu papel de almofada social.
Agora, com um governo socialista respaldado num acordo parlamentar com BE e PCP, as relações da CNIS com o poder terão as mesmas marcas de sempre: “Lealdade, vontade de servir, disponibilidade para partilhar conhecimento, participar em definição política”.
Lino Maia manifesta-se agradado com a escolha de Vieira da Silva para a pasta do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Os próximos tempos? O presidente da CNIS resume numa simples frase: “Nós somos e seremos os mesmos de sempre”.
SOLIDARIEDADE- Agora que está definida a solução política para o governo do país que balanço é que faz da relação do anterior executivo com a CNIS?
PADRE LINO MAIA- Foi um tempo de cooperação muito leal, muito intenso e com claros benefícios para a comunidade nacional. Houve da parte do governo um reconhecimento da importância deste setor e também uma atitude de uma certa impotência face aos desafios. Isto é, se não colaborasse com os agentes sociais que estão no terreno havia impossibilidade real de responder aos desafios. Houve reconhecimento e vontade de cooperar para que melhor e mais se respondesse às necessidades, carências e dificuldades.
Desse ponto de vista, o Ministério da Solidariedade e Segurança Social deu provas de conhecer bem o setor...
Conhecia bem e, sobretudo, reconhecia. Reconhecia que neste setor encontrava parceiros credíveis com uma vontade muito forte de servir e com um histórico de experiência, serviço e competência. Por isso, acabava por confiar, atribuir e disponibilizar meios e objetivos para a economia social solidária.
A cooperação foi aprofundada neste período?
Desde o tempo do ministro Silva Peneda, nos anos oitenta, que se deram passos importantes e significativos. Eu estive mais nestes últimos anos, mas reconheço que se começou bem. Acompanhei mais no tempo de Ferro Rodrigues e Vieira da Silva. Foram dois bons ministros. Aprofundaram o conhecimento sobre este setor. Não podemos dizer que se atingiu agora um bom nível de cooperação sem ter em conta que o caminho começou muito lá atrás. No início havia muito voluntarismo; passou-se a uma fase de maturação, com dirigentes dedicados e competentes; seguiu-se uma boa colaboração, com meios académicos que dedicaram alguns estudos a esta área. Houve um crescimento. O governo passado chegou numa altura em que o setor estava bastante amadurecido, com conhecimento, com experiência suficiente e aproveitou o corolário de um processo, de um histórico. Não retirando mérito e valor à cooperação destes últimos anos, direi que, sem esse passado, não era possível chegar-se onde se chegou.
Nos tempos de crise este governo reconheceu o mérito do setor solidário que funcionou como uma almofada social. De certa forma protegeu-o de cortes e constrangimentos, mas também se serviu dele para atenuar os efeitos da austeridade...
Sem dúvida. No fundo, foi protegido porque era uma arma inultrapassável para enfrentar situações difíceis. Sem a nossa ação, os mais desfavorecidos, os muitos desempregados, as famílias ainda ficariam mais desprotegidas. A crise teria efeitos colaterais muito mais acentuados. Reconheço mérito ao governo de ter percebido isso. Logo no primeiro compromisso que assinámos, o primeiro-ministro Passos Coelho chamou-lhe uma “coligação solidária”. Sem ela as dificuldades seriam maiores, a crise seria mais profunda. Sentiram-se menos as dores da austeridade.
Que lhe parece este processo de escolha do novo governo?
Nem sempre estou de acordo com ele, mas permito-me citar uma frase da coordenadora do BE que diz: É a democracia a funcionar. Todas as leituras são corretas. Todos têm razão. Quem diz que ganhou as eleições e quem afirma que os mandatos da Assembleia da República são o mais importante para a formação do governo. Este governo tem um respaldo parlamentar claramente maioritário. O povo escolheu para primeiro-ministro o líder do PSD, que se apresentou às eleições na forma de coligação com o CDS/PP, mas esse líder não teve o respaldo parlamentar suficiente. É a democracia a funcionar. Ouço o PCP a dizer, e eu concordo, que as eleições não são para primeiro-ministro mas para a Assembleia da República. O mais importante é o futuro. É preciso que este governo governe bem e tenha sucesso, para bem do país. Neste respaldo parlamentar achei muito interessante que o Partido Comunista e também o Bloco de Esquerda fossem chamados à mesa de negociações. Eu questionava o arco da governação. Nenhum partido deve ser afastado à partida de dar o seu contributo. E daqui a 4 anos o povo vai pronunciar-se novamente.
Como avalia o papel do Presidente da República neste processo político?
Claro que é mais fácil falar sem qualquer responsabilidade. Penso que o Presidente poderia em alguns momentos ter-se mostrado mais flexível. Com a sua intransigência, e recordo que ele foi eleito maioritariamente pelo povo português, ele tornou mais difícil o diálogo. Espero que para o bem do povo português agora haja uma boa relação. Para mim o importante é o povo, o país, a pátria. É importante que haja uma boa articulação entre a Presidência da República e o governo tendo em atenção o que é mais importante para o povo português.
Ficou agradado com a escolha para as pastas com quem a CNIS mais se relaciona?
Sem dúvida. Tenho pelo ministro Vieira da Silva um grande apreço e muito respeito. É um homem sensato, que conhece e respeita este setor e sabe que sem ele quem perde é o povo. Fiquei muito agradado. Da parte do primeiro-ministro foi um sinal interessante para o setor e para o país. Falava-se nele para várias pastas onde seria competente. Quando escolheu Vieira da Silva eu não duvido de que olhou ao passado dele e à experiência, mas também à importância de continuar uma boa cooperação. Claro que não é só com Vieira da Silva que nos vamos entender, mas também com a Educação, a Saúde e até com a Justiça. No fundo, com todo o governo. Não conheço os outros ministros, mas à partida acredito em todos. Todos querem o melhor, podem é não ter o conhecimento necessário. Mas eu acredito na boa intenção e na boa vontade dos vários titulares. Não tenho medo da cooperação. Mesmo que fosse outro o ministro da Solidariedade e Segurança Social e, repito, fiquei muito agradado pelo sinal que representa a escolha de Vieira da Silva, poderia contar da nossa parte com lealdade, vontade de servir, disponibilidade para partilhar conhecimento, participar em definição política. Para mim não é importante se é este partido ou outro qualquer. É importante que todos procuremos sempre o melhor possível para o povo português. Já dialoguei com muitos ministros no passado, provavelmente no futuro também vou dialogar e teremos sempre esta atitude e esta preocupação que tenho encontrado do outro lado. Procuramos sempre o melhor caminho e a melhor solução.
Considera, então, que os tempos próximos vão ser de continuidade na Economia Social Solidária…
Ninguém assume responsabilidades governativas sem conhecimento mínimo das pastas ministeriais. Não podemos perder tempo. Este setor, sem grandes preocupações de imagem e comunicação, foi-se revelando e ninguém pode dizer que o desconhece. Nem os partidos nem a comunidade nacional. Sem este setor as coisas correm mal. É evidente que estamos disponíveis e interessados em darmo-nos a conhecer, partilhar ideias...
Tem a expectativa de que a CNIS mantenha o estatuto de parceiro social a todos os níveis...
Não tenho dúvidas. Acredito que, desse ponto de vista, vai ser uma continuidade.
Como encarou as palavras de Catarina Martins do BE, no Parlamento, a propósito do sector que lidera? Chamou-lhe “rede clientelar sem escrutínio público”…
Fiquei um bocado revoltado. O Bloco de Esquerda é provavelmente o partido que tem a obrigação de conhecer melhor este setor até porque tem gente muito bem formada e muito capaz, então na área da sociologia tem gente muito competente. Mas é o partido que mais o desconhece. É um partido com o qual ainda não há o hábito do diálogo permanente e construtivo. Tem havido com todos os outros partidos diálogo habitual. A Drª Catarina Martins é uma pessoa competente, foi a grande vencedora das eleições de 4 de Outubro, o BE subiu muito e por mérito dela. Penso, portanto, que terá sido no calor parlamentar que ele disse o que disse. Tive acesso ao texto escrito que ela leu, mas dá-me a sensação que não tinha aquilo lá. Foi no calor do debate que terá dito aquilo com o preconceito que durante estes quatro anos muitos nos viram como colaboracionistas do governo que estava a ser julgado no Parlamento. Esqueceram-se que, de facto, da mesma maneira que cooperámos ou colaborámos com o governo que cessou funções, tínhamos cooperado com outros governos socialistas anteriores, que vamos cooperar com o atual governo e se fosse um executivo liderado pelo BE ou pelo PCP, contaria exatamente com a mesma cooperação, colaboração, determinação e lealdade. A CNIS não é um partido. Na direção tem pessoas oriundas de todos os quadrantes políticos. Não gostei daquela afirmação da Drª Catarina Martins e tive oportunidade de lho dizer por escrito. Desvalorizo, porque julgo que foi resultado do calor do debate, mais ninguém a secundou e não voltou a ser repetido. Se fosse hoje penso que não diria o mesmo. Nós somos e seremos os mesmos de sempre.
Consigo a liderar a CNIS teve um momento de grande contestação: o ATL. Imagina que a CNIS poderá ter posições de protesto e oposição a medidas deste governo para o setor?
Eu admito que haja temas que podem ser reanalisados. O que não queria é que a direção da CNIS, como de resto, julgo, as Misericórdias e Mutualidades, soubéssemos de decisões, de reorientações políticas pela comunicação social e fôssemos colocados perante factos consumados. Há agora o Decreto-Lei 120 de 2015 que estabelece bases da cooperação, é o que eu chamo a Lei de Bases da Cooperação, e por ali se vê que há uma comissão permanente, em que temos assento, junto com responsáveis deste setor e vários ministérios, e é ali que é a sede onde as questões devem ser debatidas e abordadas. A CNIS coopera, mas não é responsável, nem pela universalidade dos direitos sociais nem pelas políticas. Dá o seu contributo com a melhor das intenções e com a experiência acumulada. Pode haver assuntos polémicos, mas não há temas tabu, nem dogmas aqui estabelecidos. Há um princípio: cooperando nós encontramos as melhores soluções para o povo português. E disso não abdico. Este governo tem a sua orientação perfeitamente legítima e estou convencido que há dossiês que serão reanalisados. Daremos o contributo, diremos o que pensamos e havemos de chegar a consensos.
A CNIS vai-se modificando... Há cada vez mais desafios e participações que exigem mais conhecimento técnico e maior capacidade de resposta…
A CNIS tem vindo a crescer. Os desafios alargam-se e aprofundam-se e há novas solicitações. Durante muitos anos a CNIS viveu da dedicação espantosa e ágil de uma pessoa: o padre José Maia. Hoje os desafios são mais extensos. Este setor precisa de uma CNIS com mais técnicos, com cada vez com mais conhecimento e maior capacidade de servir. Temos muitas frentes. Para uma direção voluntária, como é o caso, isto é entusiasmante, mas é preciso uma estrutura cada vez profissional. Não demasiadamente grande. O crescimento deve ser progressivo consoante as necessidades. Com a vontade de servir, de estar presente, de apoiar as instituições, as Uniões, vontade de cooperar.
É por isso que foi criada a função de diretor executivo?
Na linha da reorganização é preciso que haja alguém que seja o elo entre os serviços, entre as diversas frentes, para pôr tudo a funcionar, liderando a estrutura, para que não deixemos processos e assuntos adormecidos. O diretor executivo escolhido foi o Dr. João Carlos Dias. É uma pessoa muito competente, um dirigente da CNIS que suspendeu o mandato para estar neste serviço. Conhece a CNIS tão bem ou melhor do que eu. Conhece este setor muito bem, e como era presidente-adjunto, já muitas vezes os dois nos tínhamos apercebido que era importante dar este passo. É alguém que conhece muito bem a estrutura, os desafios e os serviços. É a pessoa indicada.
Deixa de haver presidente-adjunto?
Muito sinceramente nunca vi muito bem qual era a função de um presidente-adjunto. É necessário haver um presidente e um vice-presidente que o substitua. Pese embora ter tido nessas funções o professor Eugénio Fonseca e depois o doutor João Dias, ambos muito competentes, nunca percebi muito bem a natureza da função. O mandato está em curso, talvez se justifique um vice-presidente. Neste momento prescindimos do presidente-adjunto para termos um bom diretor executivo.
Um dos novos desafios da CNIS é a participação na PAR. Qual é o ponto de situação?
Seria muito mau que nós não nos sensibilizássemos perante a necessidade de acolher refugiados. São os mais frágeis entre os frágeis. Nós não olhamos ao país, à cor da pele, à religião, mas apenas para as pessoas. Perante o fenómeno dos muitos que fogem de situações de guerra e procuram uma oportunidade de viver nós não podíamos fechar os olhos. Criou-se a plataforma, a PAR, onde estivemos desde o início envolvidos, eu pessoalmente, a minha instituição e a CNIS. Noto neste momento alguma desmobilização porque estávamos à espera que os refugiados chegassem a Portugal mais cedo. Sempre pensei que só em última instância é que viriam para o nosso país. Eles preferem a Alemanha, o Norte da Europa porque para eles Portugal não é uma oportunidade de futuro. Por isso, fomos criando condições, há um grande envolvimento de instituições. Não foi em Outubro, não sei quando é que virão, mas esta morosidade no processo provoca alguma desmobilização. Espero que comecem a chegar em breve.
Com os atentados de Paris recrudesceu o medo…
Em Portugal também há quem fale de casos de infiltração de terroristas nos refugiados para agudizar um perigo a que é preciso por cobro. É um fantasma que se tenta materializar para dificultar o processo de acolhimento. Nas instituições de Solidariedade eu não tenho notado esse receio. E ainda nenhuma recuou nas intenções de acolhimento. O esmorecimento tem que ver com o processo longo e com o atraso.
V.M.Pinto – texto e fotos
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