A queda dos graves

1- “Ai Galileo ! / Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, / que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,/ andavam a correr e a rolar pelos espaços / à razão de trinta quilómetros por segundo.”

A cena de Galileo perante o julgamento dos inquisidores e assim evocada por António Gedeão é conhecida da pintura: de um lado, o cientista, sentado num escabelo, “ dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual / conforme suas eminências desejavam,/ ... que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal / e que os astros bailavam e entoavam / à meia-noite louvores à harmonia universal.” ; do outro, os defensores do pensamento único e do saber blindado contra as evidências da vida, “ um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo”, a olharem severamente o livre pensador.

Sempre mais dado às letras do que às ciências, essas evidências científicas que decorrem directamente da observação empírica e que são apresentadas como certezas continuam para mim razoavelmente opacas.
Ainda hoje, já bem adulto, mantenho a mesma perplexidade juvenil perante o facto, que Gedeão todavia me assegura verdadeiro, como o fazia já o meu longínquo professor de Física, de que um penedo cai no espaço “ com a mesma rapidez que um botão de camisa ou um seixo da praia”.
Para o meu primarismo científico, o que parece evidente é “ que os corpos caem tanto mais depressa / quanto mais pesados são”.
O que parece, neste caso, não é.

Não devo, no entanto, permitir que a minha ignorância em tais domínios se transforme na chamada ignorância atrevida, que, à míngua de atestação ou comprovação empírica , se filia directamente no direito divino e na sua indiscutibilidade. E que queira impô-la pela espada, ou por meio equivalente.

2 - Tudo o que fica escrito tem que ver com as chamadas “ ciências exactas”, como a física, a química, a astronomia, a matemática...

Mesmo nestas, as leis vão mudando – o que fora enunciado como verdade por Ptolomeu e Aristóteles foi revisto por Copérnico, por Galileo, por Savonarolla, por Einstein... E continua a sê-lo à medida que novos meios vão pondo em causa “ evidências” anteriores – como sucedeu há dias com Plutão, despromovido de planeta.

Ainda no passado dia 30 de Setembro, no Expresso, o professor de Matemática, Nuno Crato, ao escrever sobre a questão matemática, que vem do tempo da Antiguidade Clássica e dos Gregos, da quadratura do círculo, e da demonstração, operada em 1882, da impossibilidade da sua resolução, termina a sua coluna no jornal com a conclusão de que “ talvez não haja maior prova do poder da Matemática do que este, o de conhecer os seus próprios limites”.

Significando isto que o que é hoje para nós verdade, de acordo com o estado dos conhecimentos e os meios postos à nossa disposição para aceder a esses conhecimentos, poderá deixar de o ser amanhã, em que um novo telescópio, ou um novo acelerador de partículas, nos vem ensinar que o mundo não é afinal como pensávamos.

Esta humildade perante o saber, que prefere o doce veneno da dúvida à arrogante afirmação das verdades imóveis, desde que sejam as nossas, é que me parece que é o timbre que assinala a idoneidade científica.

3 - Todo este arrazoado para dizer que nem naquilo a que chamamos exacto podemos acreditar como eterno.

Mas se é assim com o conhecimento das coisas exactas, maior razão para esta precariedade nos oferece a história das ideias, que não tem sequer a caução da observação e da realidade tangível como garantia de perenidade.

É certo que muitos dos chamados “ cientistas sociais” proclamam para o seu campo de estudo a certeza científica das suas “descobertas” sobre o comportamento humano com porventura mais vigor do que na Matemática se sustenta que 2 + 2 = 4.

Há, de resto, e com desenvolvimentos nos jornais, uma polémica que tem percorrido o palco dessas “ciências sociais” e que tem como rostos, de uma banda, Boaventura de Sousa Santos, guru das correntes científicas que constituem a ideologia dominante e que a reproduzem nas várias escolas superiores de ciências sociais – os homens, e mulheres, “doutos, hirtos, de toga e de capelo” de que falava o Gedeão ; e, da banda oposta, Vasco Pulido Valente e Maria Filomena Mónica, que sustentam, como a todos nos diz o senso comum, que as ciências sociais de ciências nada têm, e que no seu objecto se não trata no essencial senão das ideias e da sua história.

Pode parecer que não, mas faz toda a diferença.

A grande diferença é que a tolerância, que tanta falta faz mesmo no domínio do empírico e do exacto, e cuja falta levou a que tanta gente tivesse sido queimada na fogueira, é absolutamente essencial no debate das ideias.

Prometi, no mês passado, que voltava ao tema – e aqui estou a cumprir a promessa.

Há pouco mais de um mês, durante as férias, em declarações ao Jornal de Notícias, a propósito do conflito entre duas instituições – a associação Qualificar para Incluir, ao que percebi uma espécie de braço secular do Instituto Superior de Serviço Social do Porto, e as Oficinas de S. José - , a Directora da primeira teria declarado que a segunda recusava o “ contributo da ciência”. Ciência de cujas leis - ficava implícito – aquela primeira instituição seria qualificada intérprete.
Nomeadamente no contexto dramático da notícia, confesso que ver chamar ciência – com o peso semântico de respeitabilidade que a palavra contém – a um modelo de intervenção social sobre pessoas causou-me alguns cuidados.
Modelos sociais sem o escrutínio do debate livre e legitimados em circuito fechado invocando uma dogmática caução “científica” estão feridos de uma contaminação totalitária, que é agravada ainda quando o seu objecto são pessoas, cobaias indefesas de modas ideológicas.



Deus nos livre dos donos da verdade.

 

Data de introdução: 2006-10-06



















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