CRIANÇAS EM RISCO

Reflexões de Dulce Rocha, em carta às CPCJ

Nos últimos dias, fomos mais uma vez despertados pela trágica morte de uma criança de cinco anos, em consequência de comportamentos criminosos, da sua própria família. Vítima de graves lesões que lhe provocaram a morte, soubémos depois que esta criança havia permanecido à guarda de uma madrinha durante um período significativo da sua curta vida e que houve um dia em que o pai reivindicou a filha e a arrancou do ambiente acolhedor e feliz onde se encontrava.

A atitude autoritária do pai gerou decerto um enorme sofrimento para a criança, que assim não viu respeitado o seu direito à preservação dos laços afectivos profundos que estabelecera com a sua família de acolhimento.

A questão de prevenir estas situações e as gravíssimas consequências destes comportamentos abusivos é decisiva. E o diagnóstico do perigo é por vezes difícil, porque não é ainda unívoca uma definição do conceito de perigo.

Por exemplo, quando num dado momento, uma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens tem notícia de que uma criança está a viver com uma madrinha e que está bem, assistimos ainda a um entendimento no sentido de negar o perigo. Ora, o perigo resulta do facto de os pais, que não assumiram a sua função parental de forma prolongada, poderem, a qualquer momento, retirar a criança do ambiente acolhedor, tranquilo e feliz onde se encontra, caso não tenha sido definida antes a situação jurídica da criança através de uma medida que a proteja.

Em casos como este, a medida adequada é, indubitavelmente a de confiança a pessoa idónea. Daí que se me afigure manifestamente aconselhável a instauração de um processo de promoção e protecção com vista a assegurar a permanência da criança à guarda daqueles que dela vêm cuidando, substituindo-se na função parental, assumindo os deveres que cabiam aos pais e que estes não quiseram ou não puderam assumir.

A omissão das responsabilidades parentais, particularmente se verificada logo após o nascimento é um elemento fáctico com fortíssimo significado que deve ser avaliado com os conhecimentos que hoje possuímos acerca do conteúdo da relação afectiva entre pais e filhos.

Quando um recém-nascido não é assumido por seus pais e quando simultaneamente se verifica uma substituição das figuras parentais por outrém, a referência para a criança é essa figura substituta. Foi com ela que se estabeleceu a vinculação psicológica, que lhe permitiu desenvolver-se com estabilidade emocional, de forma saudável.

É por isso que é muito importante fazer corresponder à situação fáctica uma decisão de uma entidade competente para aplicar uma medida de promoção e protecção, seja a CPCJ, quando existem os necessários consentimentos, ou um Tribunal, quando não forem prestados.

O perigo existe, portanto, enquanto os pais que não estabeleceram qualquer relação afectiva de qualidade e significativa com a criança, detiverem plenamente o poder paternal.

Em 1983, no Centro de Estudos Judiciários foi criado o “Grupo Permanente de Análise da Problemática das Jurisdições de Menores e Família”, que em 1986 produziu um documento em que dizia: “Está em risco toda a criança a propósito da qual se nota uma falta de suficiente investimento afectivo por parte dos pais biológicos (em especial a mãe), sobretudo se eles não existem, rejeitam a criança ou não assumem a função parental.”

Foi neste sentido que desde há mais de 20 anos, foram instauradas inúmeras acções destinadas a prevenir a vitimação da criança, adoptando-se um conceito de perigo alargado, de forma a evitar a concretização de graves prejuízos à criança, provocados pelo exercício abusivo da autoridade parental.

Quando um pai ou uma mãe, que durante anos não cuidaram da criança, a reivindicam como se fosse um objecto, sem respeito pelas ligações afectivas que entretanto deixaram que se estabelecessem entre a criança e os seus prestadores de cuidados, estão a fazer um uso indevido dos seus direitos, o que é manifestamente ilegítimo.

Por tudo quanto procurei expor, entendo que, em casos como aquele que foi noticiado, as CPCJ deverão intervir, ainda que não haja perigo concreto, ou seja, ainda que os pais nunca hajam manifestado intenção de retirar a criança, porque sabemos que a qualquer momento poderão querer retirá-la.

Por razões de segurança, importa pois definir a situação jurídica da criança, através de uma medida que promova os seus direitos e a proteja eficazmente.

Senti necessidade de fazer este alerta a todas as CPCJ, face à gravidade que podem assumir situações desta natureza. Na verdade, como referi aquando dos Encontros Anuais, estudos realizados em Países estrangeiros, demonstram que a grande maioria das mortes por maus-tratos ocorre justamente em situações já sinalizadas aos serviços como de risco. Isso significa que apesar de não podermos evitar completamente o crime, poderemos, sem dúvida, contribuir para diminuam estas tragédias.

Entendi, pois, ser meu dever partilhar convosco algo que é produto de não só uma reflexão, mas também de uma longa experiência profissional, sobretudo no Tribunal de Menores de Lisboa.

Dirigir-me-ei de novo a todos vós dentro de alguns dias.

Desejo-vos entretanto bom trabalho, perseverança e esperança de que seja reconhecido o esforço de todos quantos vêm lutando pela defesa das crianças, por vezes com escassos meios e apoio deficiente por parte de quem deveria prestá-lo.

Com os melhores cumprimentos,


A Presidente da Comissão Nacional de
Protecção das Crianças e Jovens em Risco
(Dulce Rocha

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Data de introdução: 2005-08-03



















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