JOSÉ FIGUEIREDO

SOBRE A DESIGUALDADE: Salário Mínimo e Salário Máximo (2)

Os salários mínimos fixados na lei do estado são hoje uma coisa banal – existem em praticamente todos os países do mundo desenvolvido.

O argumento decisivo para a implementação de salários mínimos foi, e continua a ser, de natureza moral. No plano da pura economia há fortes argumentos contra a instituição de salários mínimos legais.

O mesmo fundamento moral que nos levou aos salários mínimos deveria ter conduzido ao conceito de salário máximo. Se concedêssemos à moral a voz mais forte deveríamos ter hoje em dia salários máximos um pouco por todo o lado. Contudo, não existe, que eu saiba, um único país do mundo desenvolvido que tenha criado a figura do salário máximo.

Tenho dificuldade em perceber porque achamos moralmente repugnante que uma pessoa com um trabalho honesto não ganhe o mínimo para uma vida decente e não temos a mesma repugnância pelo facto (actualmente banal) de o administrador executivo (CEO) de uma grande empresa cotada em bolsa ganhar num mês o que um trabalhador médio dessa empresa ganha numa vida inteira.

Como explicar este enviesamento moral?

Não sei dizê-lo de ciência certa. Posso, como sempre, alinhar algumas hipóteses:

O fenómeno é recente

É verdade – estamos a falar de algo que no passado não tinha a mesma expressão quantitativa.

No tempo de Milton Friedman, os economistas liberais tinham de fazer alguma ginástica intelectual para justificar os salários dos CEO das grandes cotadas, na altura, tipicamente à roda de 20 ou 30 salários médios das empresas.

Com a revolução liberal dos anos 80 (Reagan em US e Thatcher em UK) o volante começou a rodar.

Fonte: Paul Krugman Blog

No entanto, foi nos anos 90 que o grande salto ocorreu. Porventura ainda não nos demos suficientemente conta da dimensão do absurdo para nos revoltarmos contra ele.

Não deixa de ser curioso que este pulo colossal nas remunerações de topo tenho coincidido com a presença da “esquerda liberal” no poder – nos Estados Unidos, Bill Clinton e, mais tarde, em 97, Tony Blair em Inglaterra.

É perigoso mexer no vespeiro

De facto pode ser como o demonstra a experiência no Reino Unido. No Reino Unido a ideia de um salário máximo já foi pensada embora apenas para o sector público. Uma comissão especializada, a pedido do parlamento, chegou a propor um número que seria o máximo pagável, por ano, em qualquer instituto público – 225.000 libras o que equivale a mais ou menos a 315.000 euros.

Embora possa parecer que o número não é particularmente limitativo, a verdade é que a proposta não passou. Em parte porque se temia que, com essa remuneração, não fosse possível recrutar pessoas altamente qualificadas para o serviço público. Por exemplo, o actual governador do Banco de Inglaterra, provavelmente não seria Mark Carney se existisse um tecto salarial no sector público inglês…

Mas, para o Reino Unido, o maior problema estaria no sector privado. Londres é o segundo centro financeiro do mundo e o mais importante da Europa. Se fosse fixada uma remuneração máxima legal, válida para todos os sectores, é muito provável que muitas das operações financeiras sofisticadas que hoje parqueiam na City, migrassem para paragens onde remunerações de alguns milhões de dólares por ano não fossem ilegais…

A experiência nas terras de Sua Majestade prova que o caso não é simples!

Não é garantido que as super remunerações sejam um problema real – não é inevitável que exista imoralidade

Num mercado livre os factores são pagos pela produtividade marginal. Se o CEO tem uma produtividade marginal de 100 milhões de euros por ano onde está o escândalo?

Sem dúvida que o talento é uma coisa rara e preciosa. Podemos ver isso no desporto onde os superdotados obtêm remunerações fabulosas. Se um jogador de futebol de topo, um piloto de automóveis ou um jogador profissional de golfe pode ganhar milhões de dólares por ano porque diabo não pode ter remunerações idênticas um gestor excepcionalmente talentoso?

Não haveria nada a opor se as coisas fossem assim tão simples. Contudo convirá não esquecer alguns detalhes.

Desde logo muitos cargos de topo no mundo corporativo (mais na Europa que nos Estados Unidos) são ocupados não pelos mais talentosos mas por herdeiros. Na Europa ainda são raras as empresas familiares que têm uma gestão profissional independente da família. Pode dar-se o caso de alguém acumular um enorme talento para a gestão com o facto de ter nascido na família certa mas serão, em princípio, casos raros.

Depois, mesmo nos casos em que a gestão é profissional, como garantir que a remuneração está adequada à “produtividade marginal”?

É certo que as remunerações de topo compreendem em geral uma larga proporção de pagamento variável em função da obtenção de determinados objectivos corporativos: resultados líquidos ou crescimento do negócio, por exemplo. Pode dizer-se que o dinheiro que gestor ganha é apenas uma pequena parte do valor que acrescenta aos accionistas e à sociedade e que, portanto, não existe imoralidade na sua remuneração.

Não excluo que isso seja verdade nalguns casos, em que o talento pessoal e específico do gestor é decisivo para consecução dos resultados, ou seja, ninguém senão ele teria conseguido aqueles resultados.

Mas estes casos são raros. Na maioria dos casos que conheço os resultados são atingidos por equipas sendo que, se em vez do gestor A lá estivesse o gestor B, os resultados seriam sensivelmente os mesmos a não ser que o gestor B fosse alguém muito pouco dotado ou um tanto preguiçoso. Ou seja, na maioria dos casos não há nada de estritamente pessoal, que só aquela pessoa tenha, que justifique uma “produtividade marginal” supostamente elevada.

Há aliás um argumento quase anedótico que mostra que não é a produtividade marginal que explica o crescimento dos salários de topo. Na verdade esse fenómeno é, acima de tudo, um fenómeno anglo-saxónico. Ora não consta que os gestores anglo-saxónicos sejam assim tão mais produtivos que os restantes…

Mesmo que as super remunerações sejam um problema real o sistema de impostos progressivos trata do caso.

De facto, já foi assim no passado recente. Ainda não há muitas décadas era mais ou menos consensual nas sociedades mais desenvolvidas do mundo que remunerações excepcionalmente gordas deveriam pagar taxas marginais de imposto muito elevadas. Até à revolução liberal dos anos 80 as taxas marginais de imposto superavam os 80% no Reino Unido e nos Estados Unidos rondavam os 70%.

Contudo, hoje as taxas marginais de imposto médias dos países da OCDE estão 23 pontos por baixo dos valores do início dos anos 80 pelo que o argumento de que a progressividade do sistema fiscal resolve o problema é falso.


Fonte: OCDE

Curiosamente a evidência empírica insinua mais ou menos o contrário, isto é, que a redução das taxas marginais de imposto acelerou o crescimento das remunerações de topo.


Fonte: OCDE

Aparentemente existe uma correlação forte entre as taxas marginais de imposto e o share dos 1% do topo no total de rendimento, ou seja, quanto mais reduzimos as taxas marginais de imposto sobre o rendimento (beneficiando os mais ricos) maior é a desigualdade na distribuição dos rendimentos antes de impostos.

Nunca devemos perder de vista que correlação não é o mesmo que causalidade. No entanto, talvez exista mesmo um nexo causal. Na verdade, onde as taxas marginais de impostos são muito altas o incentivo para outorgar salários milionários é mais baixo. O incentivo para exigir um salário de 5 milhões de dólares por ano pode ser mais baixo se acima do primeiro milhão 90% forem direitinhos para o ministério das finanças.

Em resumo, não é fácil encontrar argumentos que justifiquem a ausência de um sério problema moral colocado na esfera pública nem o quase silêncio que a hipótese do salário máximo convoca.

Contudo também não é verdade que o problema do salário máximo seja um mero devaneio de intelectuais – há países onde o tema é levado muito a sério

A Suíça colocou recentemente a referendo a possibilidade de limitar o salário máximo pagável numa empresa a um múltiplo de 12 vezes o salário mínimo da companhia. É fácil perceber o valor moral da regra: se queres ganhar muito dinheiro trata de pagar melhor aos teus trabalhadores…

A verdade é que o referendo perdeu 65/35. Não duvido que o referendo foi legal e que a votação foi limpa e justa. Mas não tenho a certeza que as pessoas tenham votado em completa liberdade. Claro que as grandes companhias (Nestlé, Roche, Syngenta, etc.) foram avisando que caso o referendo passasse mudariam as sedes para outros países…

Em todo o caso, mais de 1/3 dos eleitores suíços acha que deve existir uma limitação nos salários mais altos que uma empresa pode pagar.

Naturalmente que a solução referendada na Suíça não é uma solução milagrosa. Os gestores das companhias poderiam sempre fazer outsourcing das funções com salários mais baixos (por exemplo, os serviços de limpeza) e com isso aumentar o salário mínimo da companhia e logo o salário máximo que poderiam auferir.

Em todo o caso as experiências no Reino Unido e na Suíça, apesar de fracassadas, mostram que a o tema não está morto.

Espero bem ainda viver o bastante para ver salários máximos tão banais como hoje são os salários mínimos.

José Figueiredo, Economista

 

 

Data de introdução: 2015-07-12



















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