D. JORGE ORTIGA, PRES. DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA

Há um défice de participação cívica em Portugal

SOLIDARIEDADE - Muito se tem falado da importância e da função que a Igreja pode desempenhar em tempos de crise. Acha que a Igreja pode ser mais interveniente, também, porque os tempos são difíceis?

D. JORGE ORTIGA
- Penso que a Igreja pode ser mais Igreja nestes tempos em que todos reconhecem que a crise que estamos a viver, se é de ordem económica, ela tem raízes mais profundas. É nesse âmbito que a Igreja pode intervir. O essencial da vida da Igreja está no anúncio de uma boa nova, de uma boa mensagem. Um anúncio que tem que ser acolhido pelas pessoas e, uma vez acolhido, vai gerar comportamentos novos e diferentes. É na mensagem, de que a Igreja é possuidora, que está a grande novidade. Evidentemente que a Igreja não é apenas portadora de uma mensagem. E é por isso que a Igreja se envolve na procura de soluções adequadas para os graves momentos que estamos a viver. Mas, enquanto não mudarmos os corações dos homens não chegamos à causa da crise. É por isso que é fundamental continuar este trabalho e a Igreja deve aproveitar esta ocasião para incutir uma nova mentalidade, uma nova maneira de ser, para que possamos, 24 horas por dia, viver num ambiente de solidariedade de fraternidade e de respeito do outro. De aceitação de todo e qualquer ser humano e aceitação do destino universal de todos os bens. Cada um de nós tem os seus interesses individuais, mas existem também os interesses colectivos, pelos quais cada um de nós também responde e é responsável.

Para além da mensagem, a Igreja é também acção, sobretudos nestes tempos. Por exemplo, ter que substituir o Estado na solidariedade.
A Igreja tem uma mensagem, um discurso, ainda que eu não goste dessa palavra, um discurso alicerçado nos comportamentos quotidianos das pessoas. Assim, se os comportamentos mudarem, de certeza que a situação também muda. Mas a Igreja não fica só pelo discurso. Como eu costumo dizer, a Igreja tem sujado os pés na dramaticidade com que o homem moderno se tem vindo a preocupar. E é por isso mesmo que a Igreja tem investido, procurado soluções para responder a estes desafios. Foi sempre assim ao longo da história, mas nos tempos de crise foram momentos para a Igreja mostrar que a sua mensagem é de amor, de solidariedade, e que aqueles que se dizem cristãos têm que investir as melhores energias que têm para que pessoa alguma viva em condições desumanas.

Há um problema, que se tornou mais visível agora, que é a solidão dos idosos. Vários foram os casos relatados na comunicação social, designadamente o caso de Sintra. A solidão é um problema social grave…
Evidentemente que nós, como Igreja, também não temos possibilidade de ter consciência de todos os problemas que existem na comunidade. Mas, para nós, a comunidade deveria ter este sentido de conhecimento das pessoas e de responsabilidade. Se vivo num apartamento com 50 habitações não conheço todas as pessoas, mas deveria conhecer. Se me cruzo com uma pessoa todos os dias e deixo de a ver, deveria ter-me questionado sobre o que se passou. Por isso eu comecei por sublinhar a dimensão de uma nova mentalidade, uma cultura de solidariedade e uma responsabilidade que me envolve na vida dos outros. Isto é fundamental. Caso contrário, as pessoas quase desaparecem, ficam a viver sozinhas no seu apartamento e ninguém sabe delas, levando àquelas situações escandalosas que conhecemos, e que são culpa de todos. Nesta solidão, não é por acaso que também assistimos a suicídios. Podemos estudar o porquê, e em alguns casos deve-se a distúrbio psicológico, mas eu acho que isto é uma consequência da situação em que as pessoas vivem. Tudo isto deveria alertar-nos para um novo modo de viver em sociedade, realçando a sensibilidade e o vibrar com os problemas dos outros.

As instituições são uma espécie de braço social vocacionadas para a acção solidária. Nestes tempos há uma maior procura. Acha que a Igreja está devidamente formatada para essa maior procura?
A Igreja tem que ter as suas instituições mas não esqueçamos que a função da Igreja é sempre subsidiária. Ela deve entrar onde é necessária, mas nunca dispensando a responsabilidade do Estado. Tem as suas instituições em certo sentido, para prolongar, para completar. Neste momento creio que a Igreja tem investido imenso, com enormes dificuldades, com burocracias terríveis por parte do Estado. Estas dificuldades, em vez de facilitarem, dificultam a resolução dos problemas. Quer queiramos quer não, basta auscultar quem trabalha nas instituições para verificar. Não nego que é um dever do Estado exigir qualidade nos serviços. Mas há muitas maneiras de garantir essa qualidade sem estar a impedir a solução de alguns problemas.

Com a sua mensagem, para além destas instituições, e eu gosto de sublinhar bem este aspecto, a Igreja promove a mudança de mentalidade que leva as pessoas ao encontro dos outros e a descobrir problemas que são reais, da sociedade moderna, e as chamadas novas formas de pobreza. Houve um tempo em que, quando se falava de pobreza se falava em fome, na habitação, no vestir, nas necessidades essenciais. Nós hoje encontramos pessoas desempregadas e, mais que isso, envergonhadas pela sua situação. Há muita gente nessa situação: os pobres envergonhados. A Igreja conhece essas situações por uma questão de proximidade. Há pessoas que vivem situações escandalosas porque têm vergonha de recorrer às instituições, sejam estas da Igreja, da sociedade civil ou do próprio Estado. Um dos grandes males é, de facto, a solidão a que muita gente está votada. Junto destas pessoas que até podem ter o indispensável para viver, esta presença permite dar o que falta: o carinho, a ternura, uma palavra amiga, alguém com quem conversar.

Esta presença é um dos frutos da tal mudança de mentalidade de que eu falava em primeiro lugar: o sentir-se no dever de ir ao encontro das pessoas que estão sozinhas para fazer companhia. Dar o que as pessoas deveriam ter, porventura por parte dos filhos, e não têm. Seja porque os filhos não querem, seja porque os filhos não podem. É no âmbito destas novas formas de pobreza que, como diz o Papa, nós somos vizinhos mas não somos próximos. Mas esta proximidade que queremos, estar mais próximos das pessoas com quem convivemos, necessita de uma cultura de solidariedade e presença.

Esse discurso quase parece colidir com uma tendência crescente que é a da profissionalização institucional. Nas instituições, que até agora têm sido geridas, sobretudo por voluntários, pessoas da sociedade civil e pela Igreja, há agora uma demanda, do ponto de vista burocrático, legal e até da certificação da qualidade, que aponta para que os dirigentes se transformem em profissionais da gestão…
Julgo que, com as exigências que estão a criar, corremos o risco de destruir o verdadeiro espírito das associações, nas pessoas que lhe dão vida e alma. Isto também no voluntariado, seja o ligado à Igreja, enquanto tradução do espírito cristão e da fé, seja o das pessoas que livremente se associaram para dar um pouco do seu tempo. Não sou contra a profissionalização, não sou contra a qualidade, antes pelo contrário. Mas podemos ter qualidade com menos burocracia, com menos estatísticas, com menos entraves jurídicos. Muita gente desanima desse espírito voluntário livre por causa disso. Profissionalizar é bom, mas também pode tirar o tal espírito de voluntarismo, especialmente nas instituições que trabalham com quem mais precisa. Eu conheço as instituições porque as visito, especialmente aquelas que actuam nas pessoas de idade. Podem ter óptimas instalações, comida devidamente preparada, com todas as exigências que eu também acho fundamental, mas depois podem estar abandonadas. E há muitas pessoas nas instituições que se sentem abandonadas, passam o dia sozinhas, não há aquilo que todos precisamos, não há ternura, não há prazer. Esse é o risco do profissionalismo.

Na questão do IVA social, o Estado julgou poder recuperar dinheiro retirando às IPSS um recurso financeiro que servia de reforço de investimento. Resolveu-se esta circunstância no último orçamento, mas se isto vingar e as instituições não puderem recuperar o IVA, muitas instituições podem ter que fechar portas.
Sim, até porque as exigências são crescentes e as intervenções relativamente à manutenção dos espaços também são permanentes. Se há instituições que tenham finalidade lucrativa, e também é bom que existam, há outras que não têm a mínima finalidade lucrativa. E nestas últimas, os orçamentos são muitas vezes apertados, com aquilo que as pessoas pagam que é só o que podem pagar. Quem conhece as exigências de uma instituição e da sua estrutura sabe que, com as reformas que os utentes têm e com a contribuição que o Estado pode dar, apenas se consegue com muita dificuldade dar qualidade de vida a estas pessoas. E se é preciso melhorar e fazer obras, mas se depois não há a devolução do IVA, pois com certeza que isso agrava a situação. Há um valor social no trabalho que estas instituições estão a realizar. Eu diria que muitas delas, sendo sobretudo IPSS, estão a substituir o Estado e este deveria reconhecer isso, porque o Estado é o primeiro responsável por esse sector.

Teme que em Portugal, devido às dificuldades que se vivem e que se poderão agravar, possa haver manifestações populares de grande contestação?
Evidentemente que é difícil prever o futuro, mas perante a gravidade desta situação tudo é possível. Perante a gravidade social, parece-me que tudo é possível.

O povo português tem dado poucos sinais de reacção…
Eu tenho dito que há um défice de participação cívica em Portugal. Por um lado dá a impressão que o nosso povo foi educado para ter direitos e que tem direito a tudo. Depois verifica-se que o bom Governo é aquele que satisfaz todos esses direitos com maior ou menor facilidade, mas não sublinha também os nossos deveres e as nossas responsabilidades. E o dever pode ser empenho no trabalho, na profissão, no empreendedorismo. E pode ser também denunciar certas situações erradas. O ideal seria que fosse feito em via pacífica. Tenho que dizer que por temperamento e convicção sou uma pessoa optimista. Por isso mesmo, prevejo que seremos capazes de ultrapassar, com maior ou menos dificuldade este momento e que o faremos sem o recurso a esses meios violentos. Mas não podemos esquecer que os custos com a água sobem, com os transportes também sobem, tudo sobe. Os bens são mais caros, as taxas moderadoras sobem, a ausência de ambulâncias para levar os doentes, agrava tudo…

Vê um povo resignado?
Sim, e muito sentido. Como digo, precisamos que o povo seja mais interventivo. Repito que gostaria que isso fosse feito na paz.

Mudando de assunto, vê com preocupação o que se tem passado relativamente ao financiamento de algumas escolas privadas?
Vejo, mas não gosto de colocar o acento na questão do financiamento nem de resumir a questão ao problema dos números e da economia. Para mim há um princípio fundamental e constitucional. Há uma liberdade de ensinar e de aprender. Há uma liberdade de escolher o modelo de ensino e os pais devem usufruir desse mesmo direito. Daí que os primeiros responsáveis pela educação dos filhos sejam os pais e não o Estado. O Estado tem que criar condições para tal, isto porque antes do Estado está a Sociedade e nós esquecemo-nos disto. Os pais devem ter o direito de escolher para os seus filhos a educação que acham mais oportuna, numa sociedade democrática na qual existam diversos modelos de ensino e de formação. Para poder escolher o Estado tem que lhes dar garantias de que essa escolha é viável e possível. Aquilo que eu vejo por parte do Estado, por mais que digam o contrário, é uma estatização do ensino, quase uma ditadura e imposição do modelo de educação, o que numa sociedade democrática não deveria existir. A parte económica é evidentemente importante, mas é uma consequência. E era bom que se pegasse na Constituição, há diversos números que alertam para esta realidade.

A Igreja já resolveu a questão com as Misericórdias?
Estamos a resolver. Sempre estivemos disponíveis para falar, dialogamos e o esquema está levantado e aceite.

Esta polémica foi um equívoco?
Não é uma questão de equívoco. Houve a necessidade de regularizar uma situação, fruto da evolução histórico-jurídica. E agora precisamos de chegar a acordo em alguns aspectos, alguns pormenores. Por um lado existe o reconhecimento da Igreja pela autonomia das Misericórdias e, por outro lado, espera-se naturalmente a consciência por parte das Misericórdias de que também são Igreja. É uma evolução normal, dentro da história, isto porque naturalmente estamos num tempo diferente. O relacionamento há 50 anos era completamente diferente, mas dou graças a Deus por termos caminhado imenso e em breve estará tudo esclarecido e ultrapassado. Isto porque o espírito que existe entre nós e as Misericórdias, individualmente, é maravilhoso. É apenas uma questão de pequenos pormenores que devem ser tratados neste entendimento nos tempos que correm.

Sente-se bem no papel de presidente da Conferência Episcopal, com a exposição pública e o discurso incómodo a que tem que recorrer?
Não sei se me sinto melhor ou pior. Sinto esse papel como uma missão, um serviço que me foi pedido. Evidentemente que a gravidade da situação actual, particularmente na dimensão social, obriga a ter que intervir e falar. Intervir também junto das autoridades, o Governo quando é necessário, e eu tenho procurado discernir essas ocasiões. Está a acabar o meu mandato, termina na primeira semana de Maio. Após dois mandatos de 3 anos tenho que interromper. É a limitação dos mandatos, de que agora se fala, e que nós já praticámos há muito tempo, graças a Deus. Não sei se servimos de exemplo para alguém, mas para mim é bom que assim seja. Que venha agora outro, com outras ideias e outra maneira de ver, com as mãos livres, libertas para servir os outros.

D. José Policarpo, Cardeal Patriarca de Lisboa, atingiu a idade da resignação. Quem poderá suceder-lhe?...
Acho que ainda é cedo pensar nisso. O direito canónico diz que, aos 75 anos, todos os bispos apresentam a disponibilidade para deixar o serviço ministerial em termos de responsabilidade de uma diocese. Alguns por razões de saúde fazem-no antes. O Santo Padre aceita quando acha mais oportuno. Há situações variadas. Estou convencido que este não é problema para o imediato. Depois, o processo de nomeação de um bispo para Lisboa é um processo idêntico ao da nomeação de um bispo para qualquer outro local. Exige um processo, uma auscultação e segue os trâmites normais.

Não se vê como alguém a quem possa calhar essa missão?
Por amor de Deus, estou bem onde estou e nem penso nisso sequer.

V. M. Pinto - Texto e fotos

 

Data de introdução: 2011-03-04



















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