JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Pode o Capitalismo ser um agente moral? O caso das empresas que abandonam a Rússia

Escrevi em tempos neste espaço de crónica sobre a possibilidade de as corporações capitalistas poderem ser agentes morais.
A agência moral é algo que associamos aos indivíduos. Se acreditarmos que somos seres dotados de livre arbítrio também acreditamos que somos capazes de escolhas morais, isto é, de em cada circunstância escolher entre bem e mal.
Para as empresas capitalistas a questão não se coloca do mesmo modo. Às corporações capitalistas não se pede que pratiquem o bem e evitem o mal de acordo com um qualquer código moral. Na verdade, não existem para isso. Existem para maximizar resultados e apenas se lhes exige que cumpram as leis do estado.
Naturalmente que estamos aqui a simplificar, quiçá excessivamente, os temas em apreço.
A questão do livre arbítrio dos seres humanos ocupa os filósofos há mais de dois milénios, atualmente é um tema da moderna investigação das neurociências, contudo, não temos ainda uma resposta satisfatória para o problema. Para alguns o livre arbítrio é real, para outros é uma mera ilusão, embora, porventura, uma ilusão útil.
Quanto ao desiderato de maximização das empresas também não é um tema linear. Maximizar o quê? Resultados Líquidos? Dividendos? Crescimento dos negócios? Valor para os acionistas? Valor para a comunidade?
Ou seja, assim como a questão da agência moral dos seres humanos está longe de ser uma questão encerrada, do mesmo modo também é objeto de debate qual a função de máximo das empresas.
Seja como for, defendi nas minhas crónicas que corporações capitalistas, sem deixarem de o ser, podem e devem incorporar valores morais. Referi alguns exemplos de grandes empresas capitalistas que demonstram uma efetiva preocupação com potenciais impactos negativos da sua atividade na comunidade e que agem de modo a minimizá-los.
Este tema vem agora a propósito porque muitas empresas capitalistas decidiram abandonar a Rússia, e desse modo contribuir para o isolamento do regime, mesmo quando o programa de sanções decretadas pelos países ocidentais não as obrigava a fazê-lo.
A lista é enorme e inclui grandes nomes do capitalismo moderno: Mac Donalds, Ikea, Coca Cola, Zara, Shell, BP, Goldman Sachs, etc.
Poderíamos ser tentados a ver aqui uma posição moral da parte das empresas.
Em boa verdade nada no plano dos programas de sanções as obriga a deixar a Rússia e, para algumas, o que fica para trás não é propriamente despiciendo.
Por exemplo, a BP tem um investimento gigantesco na maior petrolífera russa, a Rússia representa cerca de 10% do negócio da Mac Donalds.
No entanto, acredito que devemos ler tudo isto “cum grano salis” e reservar uma dose de saudável ceticismo na avaliação do comportamento das empresas.
Como nos ensina o grade filósofo Immanuel Kant um ato só tem valor moral se for praticado no cumprimento de um dever.
É tudo menos garantido que as corporações capitalistas que estão a deixar a Rússia o estejam a fazer para ajudar a quebrar um regime despótico e agressivo, ou seja, por dever.
Desde logo algumas empresas estão apenas a antecipar-se ao que poderia ser um castigo forte por parte das opiniões públicas e a consequente debandada, ou mesmo boicote, por parte dos clientes.
Já temos um caso exemplar. A Shell começou por tentar tirar partido da difícil situação da Rússia. Embora as exportações de petróleo russo não estejam proibidas não está fácil vendê-lo por estes dias. Os petroleiros saem carregados dos portos russos sem destino. Pelo caminho tentam vendê-lo o que, em geral, acabam por conseguir a preços degradados. Fala-se de petróleo vendido a 30 dólares por barril numa altura em que os preços à vista estão bem acima de cem dólares.
Contudo, a pressão da opinião pública sobre a Shell foi de tal ordem que a companhia declarou que não vai comprar mais um barril que seja proveniente da Rússia.
Mas não é só o medo das opiniões públicas que está a empurrar as empresas para fora da Rússia.
Talvez o fator mais importante seja o medo das sanções.
Como vimos não está proibido comprar petróleo à Rússia.
O problema é que, mesmo em setores não sancionados, do outro lado de uma transação está sempre uma contraparte e, no meio das partes, uma teia complexa de transações financeiras onde intervêm inúmeras entidades.
Ora, num quadro como o atual, nunca se sabe quando, mesmo que involuntariamente, se tropeça numa entidade sujeita a sanções num negócio complexo.
E estas coisas, quando correm mal, doem mesmo!
Há um par de anos o BNP Paribas, um dos maiores bancos europeus, foi condenado por um tribunal dos Estados Unidos a uma multa de quase 9 biliões de dólares (sim, leram bem, 9 mil milhões de dólares) por ter desrespeitado os programas de sanções americanas contra o Sudão, Cuba e Irão.
Finalmente abandonar a Rússia não significa o mesmo para todas as empresas.
Para algumas, como a BP, o problema é relativamente simples. Trata-se unicamente de vender uma posição minoritária na Rosneft, coisa que pode não ser fácil no momento atual, mas que, de qualquer modo, não implica decisões difíceis como, por exemplo, despedir pessoas. É provável que a venda da posição origine uma menos valia significativa, contudo, nada que o balanço da companhia não possa absorver.
Para empresas de consultadoria como a Accenture, tratou-se unicamente de fechar escritórios, indemnizando generosamente os empregados.
Mas há casos mais complexos. Por exemplo, a Unilever, a Proctor & Gamble ou a Nestlé vendem na Rússia uma gama variada de produtos entre os quais bens de primeira necessidade e que não são facilmente substituíveis por produtos locais.
Seria justo privar os russos comuns de bens de primeira necessidade?
Para algumas empresas há um balanço difícil entre a necessidade de contribuir para o isolamento do regime russo atual e o compromisso com as populações locais. Algumas optaram por manter apenas o negócio dos bens de primeira necessidade abandonando tudo o resto.
Claro que tudo o que possa contribuir para isolar o atual regime russo é bem-vindo. As empresas que estão a sair do mercado russo estão a ajudar a colocar pressão nos dirigentes russos para aceitar uma solução negociada para a crise na Ucrânia.
Nem tudo o que vemos do lado das empresas virá de uma determinação moral. Admito que na maioria dos casos o interesse próprio, porventura, fala mais alto.
Ainda assim é um movimento positivo que devemos saudar.

 

Data de introdução: 2022-04-07



















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