Em finais de 2008 o mundo descobriu atónito que os sistemas financeiros globais eram mais frágeis que vidro quebradiço.
Os bancos de investimento americanos ou faliram (Lehman Brothers) ou foram incorporados em instituições maiores.
Na Europa, sistemas financeiros nacionais (caso de Espanha) foram resgatados e, mesmo nos casos em que isso não aconteceu, intervenções maciças do estado foram necessárias para resgatar instituições específicas ou áreas específicas de negócio financeiro. Em Portugal teremos seguido, porventura, o pior dos caminhos, ou seja, operações de resgate sucessivas (BPN, BPP, BES, BANIF) em vez de uma abordagem sistemática que restruturasse, por uma vez, o sistema como um todo. Por vezes, períodos prolongados de tranquilidade nos sistemas financeiros criam a ilusão de que estes são intrinsecamente seguros, nomeadamente que não temos de nos preocupar com a segurança dos depósitos.
Na base da intrínseca instabilidade dos sistemas bancários está o facto de estes criarem a maior parte do dinheiro que circula na economia. Tipicamente o sistema bancário cria 97% do dinheiro que circula numa economia moderna sendo apenas 3% dinheiro criado pelo estado.
Os bancos criam dinheiro (depósitos) concedendo crédito e não criam, como por vezes se pensa, crédito a partir dos depósitos. Ao contrário do que diz a sabedoria convencional os bancos não são meros intermediários entre quem poupa e quem investe ou quem consome a crédito – os bancos criam, fabricam, a partir do puro ar, a maior parte do dinheiro que circula.
Isso é possível porque os bancos estão sujeitos a um regime de reserva fracionária, isto é, não são obrigados a ter dinheiro equivalente às responsabilidades que têm perante os depositantes. Apenas uma pequena parte (quando não é mesmo nada) dos depósitos é detida em dinheiro pelo banco. O sistema funciona bem porque, em condições normais, não aparecem todos os clientes, no mesmo dia, ao mesmo tempo, para levantar o dinheiro. Apenas uma ínfima parte o faz e, em princípio, ao mesmo tempo que alguns levantam outros haverão de estar a depositar pelo que o equilíbrio se mantém. Pequenas flutuações, que sempre existem, resolvem-se nos mercados interbancários, ou seja, os bancos emprestam uns aos outros os excesso/faltas de liquidez e a coisa vai girando. Sem sobressaltos.
Descobrimos à nossa custa que não é assim, que pode não ser assim.
Na sequência da falência do Lehman Brothers, e da crise financeira global que se seguiu, ficou claro que era necessário repensar a estrutura dos sistemas financeiros. Basicamente havia duas opções: moderada - aceitar que os sistemas bancários de reserva fracionária (como existem atualmente) são os mais adequados - a questão é como fazê-los mais seguros – ou radical - arrancar por uma vez a raiz de todos os males, isto é, acabar com os bancos de reserva fracionária.
Não se pense que estas ideias surgiram agora, depois da crise financeira de 2008. Pelo contrário é um debate eterno que, naturalmente, aquece a seguir às crises financeiras e bancárias. A afirmação erudita de que os seres humanos são míopes ao desastre tem o equivalente popular no adágio que diz que só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja.
Nos anos 30, durante a Grande Depressão, apareceu o famoso Plano de Chicago, assim conhecido porque justamente nasceu nos meios intelectuais ligados à Universidade de Chicago, que recolheu o apoio de alguns dos melhores economistas do tempo, nomeadamente de Irving Fisher. Uma das componentes do plano de Chicago, um ambicioso programa de reforma monetária, era, justamente, obrigar a uma reserva de 100% dos depósitos.
Mas nada como uma boa crise para ressuscitar ideias radicais. Em 2012 o FMI publicava um trabalho académico sobre o plano de Chicago. Muitos economistas de créditos firmados como Martin Wolf, o economista chefe do Financial Times, John Cochrane, da escola de Chicago, ou Paul Krugman, apoiam o modelo de 100% de reserva ou consideram a ideia digna de análise.
Depois da crise os políticos decidiram, sem consultar ninguém, que a opção moderada, isto é, manter os bancos de reserva fracionária mas fazê-los mais seguros, era o caminho a seguir.
Claro que podemos discutir se temas tão complexos como este devem ser “decididos pelo povo”.
Conta-se que Bismark dizia que o povo devia desconhecer duas coisas: como se fazem as leis e como se fazem as salsichas. Talvez! Mas também acontece que aquilo que os políticos não levam à opinião pública, por vezes, a opinião pública leva aos políticos.
Há atualmente 18 países onde estão constituídos movimentos de opinião pública que pretendem debater o tema da reforma dos bancos. Os mais ativos são o Positive Money no Reino Unido, o Monetative na Alemanha e o Vollged Initiative na Suíça. Também existe um movimento em Portugal chamado Boa Moeda.
Esta coisa de ter depósitos 100% seguros e dispensar a cobertura do estado seria ótimo. Contudo, a mais elementar dose de saudável ceticismo, de quem não acredita em almoços grátis, convoca de imediato um conjunto de perguntas óbvias. Qual o custo da segurança? Como funciona um banco que guarda 100% dos depósitos em dinheiro? Como pode um banco que tem 100% dos depósitos guardados em dinheiro emprestar à economia? Quem vai financiar as famílias e as empresas?
Na verdade não há nenhum problema de financiamento mesmo no mais radical dos modelos.
Em primeiro lugar apenas os depósitos à ordem são guardados em dinheiro. Os bancos podem emitir “depósitos a prazo” com os quais podem suportar financiamento a famílias e empresas. Para além disso os bancos podem aumentar o seu capital ou pedir emprestado no mercado para suportar os financiamentos à economia.
Claro que isto deixa um problema em aberto: em princípio a oferta monetária tem de aumentar. Mesmo que o nível de atividade não cresça muito a simples inflação exige, coeteris paribus, que a massa monetária deva aumentar. Ou seja, alguém tem de criar o dinheiro que agora os bancos não podem criar.
O que muda nesta matéria é que a criação de dinheiro passa a ser monopólio do estado que deste modo passa a controlar diretamente a massa monetária em vez de o fazer, como atualmente, de forma indireta através da política monetária. Hoje, quando as autoridades entendem que o sistema bancário está a criar demasiada moeda (pândega de crédito) sobem a taxa de juro de modo a reduzir a procura. No futuro passarão a fixar diretamente a quantidade de moeda regulando discricionariamente a respetiva quantidade.
E como chega o dinheiro assim criado à economia real?
O estado pode financiar com criação de moeda, por exemplo, a construção de infraestruturas (hospitais, escolas, etc.), despesas sociais ou até pagar parte da dívida pública.
Pode ainda o banco central criar dinheiro que cede aos bancos na condição de estes o emprestarem à economia real.
Até agora é só virtudes, tudo parece bom, um almoço à borla. Mas como sabemos tal coisa não existe. Obviamente um modelo de 100% de reserva também tem aspetos negativos.
Mas por hoje já esgotei o meu espaço e com certeza ainda mais depressa a vossa paciência. Fica para outro dia.
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