1. As confusões terminológicas em torno da Economia Solidária, da Economia Social e do Terceiro Setor são muitas e motivadas quer pelo modo como são percebidas, quer pelo debate académico que ainda é muito incipiente.
Existem diferenças importantes entre estes três conceitos, ligadas não somente aos diferentes contextos sociopolíticos em que emergiram, mas também a interpretações distintas acerca do papel que estas iniciativas desempenham na sociedade, em relação ao Estado e ao mercado.
Este editorial pretende ser o início de um pequeno contributo da CNIS para ajudar à sua clarificação mas, sobretudo, para ajudar as nossas Instituições a melhor perceberem o seu papel e o seu contributo para a sociedade.
2. Comecemos pelo termo Terceiro Setor, que é herdeiro de uma tradição anglo-saxónica, muito influenciado pela ideia de filantropia.
Esta abordagem identifica o terceiro setor com as organizações sem fins lucrativos (non-profit organizations), juridicamente também conhecido como setor voluntário, e está particularmente ligado ao contexto norte-americano, onde praticamente não existe uma tradição de Estado Social.
Alguns autores definem as organizações do (non-profit sector) como sendo formais, privadas, independentes, não distribuem lucros e devem conter um certo nível de voluntariado. Se acrescentarmos a estas cinco caraterísticas mais duas, de não deverem ser políticas nem confessionais obtemos a classificação de Terceiro Setor conhecida pela sigla International Classification of Non-Profit Organizations (ICNPO)
Em contraste com a noção de Terceiro Setor, tipicamente norte-americana, estão as noções de Economia Social e Economia Solidária que se inscrevem num contexto europeu e estão relacionadas com o movimento associativista operário da primeira metade do século XIX e que se traduziu numa dinâmica de resistência popular.
Desta dinâmica foi emergindo um grande número de experiências solidárias, muito influenciadas pelo ideário do mutualismo, da cooperação e da associação.
Essas iniciativas associativistas, oriundas dos setores populares, recusaram a autonomia do aspeto económico em detrimento das dimensões social, política e cultural. Daí, ficarem conhecidas sob o rótulo de Economia Social.
A fisionomia destas iniciativas vai-se alterando ao longo da história. As ações que realizaram ganharam progressivamente o reconhecimento dos poderes públicos, o que resultou na elaboração de quadros jurídicos que lhes conferiram existência legal.
É nessa dinâmica que aparecem os estatutos das organizações cooperativas, mutualistas e associativas. Essa fragmentação da Economia Social conduziu a que as organizações se isolassem em função dos seus estatutos jurídicos e ao mesmo tempo se integrassem no sistema económico dominante.
As cooperativas inserem-se na economia mercantil, ocupando os “setores de atividade nos quais a intensidade capitalista permanecia fraca” (Laville, 2000) e as organizações mutualistas são quase que integralmente incorporadas na economia não mercantil praticada pelo Estado.
Do ponto de vista interno, esta dinâmica organizacional reflete a mudança no perfil dos quadros que as constituem: os militantes políticos, pouco a pouco são substituídos por profissionais de forte caráter tecno-burocrático. A dimensão técnica ou funcional da organização passa a primar sobre o seu projeto político.
A perspetiva de uma Economia Solidária desaparece, assistindo-se, no seu lugar, ao desenvolvimento de uma Economia Social que, ao longo do século XX, se torna altamente institucionalizada.
3. É justamente em relação às características atuais da Economia Social que se vem demarcar a noção de Economia Solidária. “O que nos leva a defini-la como experiências que se apoiam sobre o desenvolvimento de atividades económicas para a realização de objetivos sociais, concorrendo ainda para a afirmação de ideais de cidadania” (França Filho, 2002).
E continua o mesmo autor: “Defendemos a tese de que se elabora uma outra forma de regulação da sociedade através desse fenómeno (mesmo que ainda de forma modesta hoje), pois ele articula diferentes racionalidades e lógicas na sua ação, com suas múltiplas fontes de captação de recursos”
Nas iniciativas de Economia Solidária existem, ao mesmo tempo, a combinação de uma economia mercantil, não mercantil e não monetária: venda de um produto ou prestação de um serviço (recurso mercantil); subsídios públicos oriundos do reconhecimento da natureza de utilidade social da ação desenvolvida (recurso não mercantil); e trabalho voluntário (recurso não monetário).
Há ainda nesta conceção de Economia Solidária uma outra característica. Trata-se da construção conjunta da oferta e da procura, ou seja, os serviços prestados através das iniciativas de Economia Solidária vinculam-se às necessidades daqueles que deles necessitam.
Bem diferente do que ocorre na lógica da economia de mercado, que funciona na base de uma separação abstrata entre a oferta e a procura.
Como acabamos de constatar, a Economia Social e a Economia Solidária têm uma origem comum, mas a Economia Social foi-se institucionalizando, ou seja assumindo um papel reconhecido e apoiado pelo Estado, à medida que este foi assumindo crescentes funções providenciais. “As iniciativas mais espontâneas, inovadoras e democráticas, mais difíceis de enquadrar institucionalmente, foram ficando de fora e a Economia Solidária tornou-se assim a designação comum destas formas emergentes ou das formas tradicionais não enquadráveis” (Pedro Hespanha).
Esta breve reflexão não pretende mais do que ajudar a clarificar conceitos e a uniformizar a nossa linguagem. Espero, de algum modo, ter contribuído para isso.
Eu sinto-me cada vez mais confortável ao afirmar que as atividades desenvolvidas pelas nossas Instituições se enquadram na Economia Solidária.
Lino Maia
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