OPINIÃO

Les bons esprits

1 - Tenho com a Constituição da República uma forte ligação afectiva.
Respeito-a e procuro cumpri-la, naturalmente, como qualquer cidadão – mas é mais do que isso: trata-se mesmo de uma relação sentimental.
Tive o privilégio de assistir a várias sessões da Assembleia Constituinte e aos debates parlamentares sobre a nossa Constituição no seu conturbado processo de nascimento – in loco.
O meu sogro foi deputado à Assembleia Constituinte, pelo círculo do Porto, e levou-me várias vezes a Lisboa, nesses tempos de brasa, a assistir às sessões.
(Só havia auto-estrada do Porto aos Carvalhos e de Lisboa a Vila Franca de Xira, a viagem até à capital demorava 6 horas …)
A evolução dos trabalhos da Assembleia e os episódios relativos ao lento e sempre ameaçado processo de elaboração da Lei fundadora do Regime constituía também o tema central da conversa do almoço familiar, aos domingos.
Acompanhei, deste modo, de uma forma tão próxima quanto as circunstâncias o permitiam, o processo de construção dos alicerces constitucionais da nossa democracia.
Eu tinha 23 anos; e a esperança – aos 23 anos têm-se todas as esperanças – de que a alegria desses tempos inaugurais do regime democrático iria marcar o futuro para sempre.
Não foi assim que sucedeu … Mas também não há que estranhar, já que só muito raramente a realidade se acomoda aos nossos projectos e sonhos.
No entanto, a Constituição, embora sujeita a várias alterações que, ao longo dos últimos 35 anos, foram modificando profundamente o seu texto e os seus valores, manteve sempre os traços essenciais que definem, por um lado, uma democracia liberal de modelo ocidental; e que, por outro lado, a enriquecem com uma fortíssima preocupação social.
Ainda hoje ela regula, como pode, segundo os princípios democráticos, a nossa vida colectiva.
“A Constituição não está suspensa”, como referiu, com imprevista assertividade, o Presidente da República, numa entrevista ao “Expresso” do último fim-de-semana, a propósito do envio da Lei do Orçamento de Estado para o Tribunal Constitucional.
(Não era assim na ditadura de Salazar e Caetano, em que o artº 8º da Constituição de 1933 garantia aos portugueses liberdade de expressão, fazendo de conta de que se tratava de uma democracia; direito que, todavia, leis especiais desde sempre suspendiam.
Então, os direitos constitucionais estavam, na verdade, suspensos, e estiveram-no durante 40 anos.
Mas era uma ditadura!)
Cavaco Silva, que é meticuloso, sabia para quem falava, quando assegurou que a Constituição se não encontra suspensa.
Há, na verdade, muito quem por aí defenda que existe um direito de crise – e que estamos sob o seu império, como se o Memorando de Entendimento, a troyka e o regime de protectorado internacional em que nos encontramos pudessem pôr como que entre parêntesis a Constituição, comprimindo os direitos e as liberdades.

2 – A afirmação presidencial da plena vigência da Constituição nos dias de hoje veio a propósito do processo de fiscalização da conformidade à Lei Fundamental do Orçamento de Estado para 2013, operação a cargo do Tribunal Constitucional, a pedido do mesmo Presidente da República.
O exercício dessa competência foi mal recebido pela maioria que suporta o Governo.
Mas sem razão.
Os Estados democráticos caracterizam-se, entre outros aspectos, pelo princípio da separação dos poderes, o que significa que cada poder do Estado – o poder legislativo, o poder executivo, o poder judicial e o poder moderador, quando o haja – dispõe de competências distintas e limitadas, cabendo aos vários poderes entre si controlarem o exercício das competências dos outros.
Trata-se de um sistema de pesos e contra-pesos, de freios e de balanceamentos, que nasce desta ideia simples, mas verdadeira: quem exerce poderes de autoridade tem a natural tendência para exorbitar dos poderes que lhe estão atribuídos, para ignorar os seus próprios limites – e tal representa uma ameaça efectiva para a liberdade e os direitos dos cidadãos.
As sociedades políticas deverão, portanto, organizar-se de forma a limitar os poderes de quem manda – e, em primeiro lugar, de quem governa, pois é no exercício do poder executivo que a tendência para o excesso e para o arbítrio historicamente mais se manifesta.
O Tribunal Constitucional tem também esta importante função: a de impedir a vigência das leis – quer decretos-lei do Governo, quer leis da Assembleia da República – que violem os princípios constitucionais ou os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, assim limitando e travando as pulsões mais fundamentalistas do poder executivo.
Se for esse o caso do Orçamento de Estado para 2013, e o Tribunal entender que ofende a Constituição, devolve-o à procedência.
Não há outro caminho.

3 – Não se trata de uma idiossincrasia da nossa Constituição, a previsão da existência de uma instância judicial de julgamento da constitucionalidade dos diplomas e, nessa medida, de controlo da legalidade da acção governativa.
Todos estarão lembrados que, há cerca de dois meses, as instâncias da União Europeia se encontravam aflitas, à espera do veredicto do Tribunal Constitucional da Alemanha, que iria ou não autorizar o Governo de Ângela Merkl a entrar no fundo de auxílio à Grécia.
A própria definição do montante financeiro da ajuda à Grécia constituía competência do Tribunal Constitucional.
(Se até a chanceler alemã se curva, com modéstia e respeito, perante as decisões do seu próprio Tribunal Constitucional, a que propósito os discípulos lusos do novo Sol na Terra se abespinham com a mera hipótese de o nosso idêntico Tribunal lhes cortar as voltas?)
No mesmo sentido, na semana passada, a Comissão Constitucional francesa, que tem uma natureza idêntica a um Tribunal Constitucional, impediu François Hollande de manter o seu projecto de tributação em 75% das grandes fortunas – no que constituía uma das medidas mais emblemáticas do programa de ajustamento francês.
Ninguém se lembrou, na Alemanha ou na França – como cá logo pretenderam alguns – de rever as Constituições, para remover essa maçada de haver quem possa impor limites a quem governa.
Para remover as forças de bloqueio, para recordar uma curiosa expressão de há 20 anos.

4 – Dentre as várias mensagens de Ano Novo que, nos últimos dias, nos entraram em casa, ainda prefiro a do Papa.
Alemão, conservador, não esteve com rodeios na análise das origens da crise que vivemos, que atribuiu ao nefasto papel do capitalismo financeiro internacional e à impiedade das políticas económicas ultraliberais, lembrando a essencialidade da dignidade humana, o papel central do trabalho e do emprego, a estabilidade da família e os direitos do homem como os principais valores a que apelar para a organização do mundo em que nos coube viver.
São mesmo estas, e assim indignadas e justas, as palavras do Papa.
Creio que o Congresso das Alternativas não se supunha em tão boa companhia.

HENRIQUE RODRIGUES – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2013-01-20



















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