QUOD NON EST IN ACTIS, NON EST IN MUNDO

1 – “ … Atentai/nesta verdade, meus senhores: que nada/pode escapar-nos, coisa alguma, nada./E num bem claro gesto de que a estima/pelo bem-estar social é o que me anima,/requeiro que nessa acta fique escrito/que não falei. É tudo. Tenho dito.”
Começo a crónica evocando Jorge de Sena e a sua “Fala do delegado do Ministério Público”, tirada do livro “PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA”.

É que é do Ministério Público e da sua Polícia Judiciária que pretendo falar.
Neste fim de semana em que escrevo, o “Público” dá à estampa uma entrevista insólita do Director da Polícia Judiciária, o Procurador Geral Adjunto Alípio Ribeiro, onde este considera que “houve uma certa precipitação” na constituição como arguido do casal McCann no processo relativo ao desaparecimento da sua filha Maddie.
O principal significado destas declarações não é tanto o seu teor - já que o Director da PJ veio apenas dizer o que cada vez mais era convicção generalizada - , mas o próprio facto de o ter dito. Assim desautorizando, no mesmo passo, e para conhecimento geral, quer a Polícia que dirige, quer a magistratura do Ministério Público a que pertence.

Sabendo nós, como sabemos, do fechamento das várias corporações e dos respectivos interesses sobre si próprios, blindados ao escrutínio público e defendendo-se de olhares e críticas alheias com mantos sucessivos e sobrepostos de opacidade e um discurso redondo, sempre à volta do tema e nunca chegando a ele, maior relevo assume, pelo inusitado, a “franqueza” do Director da Polícia.
Percebe-se, assim, que, quando o mesmo fala mitigadamente numa “certa precipitação”, quer na verdade dizer que foi um verdadeiro disparate a actuação da PJ.

Não sabemos o que sucedeu, ou quem é o responsável por esta tragédia.
Mas, num caso tão dramático e com os sentimentos à flor da pele, se os pais não forem culpados e os indícios existentes não tivessem justificado a imputação da suspeita, como veio dizer o Dr. Alípio Ribeiro, a actuação da Polícia - e do Ministério Público que a validou – não tem perdão.
(Já para não falar das notícias, ilustradas com fotografias, dos jornais ingleses sugerindo que os inspectores se dedicavam mais, durante o trabalho, às delícias da mesa do que ao rigor e obstinação da recolha da prova. Isto é, mais à prova dos maltes do que à prova dos factos.)

2 – Também por estes dias, li nos jornais que o Ministério Público requereu junto do Tribunal – creio que a Relação de Coimbra – que fosse novamente adiado, pela 5ª ou 6ª vez, o momento da entrega da pequena Esmeralda ao seu pai, entrega já determinada por decisão judicial transitada em julgado, a pretexto de que a mesma deixou de ter acompanhamento psicológico há cerca de dois meses.

Recordem-se brevemente os factos:
A criança estava a ser acompanhada, sob a superintendência do Tribunal, pelos Serviços de Pedopsiquiatria dos Hospitais de Coimbra – que são Hospitais do Estado.
Os técnicos desse Serviço que a acompanhavam levaram a mal que o Tribunal não se limitasse a assinar de cruz o seu parecer sobre a regulação do poder paternal, parecer esse que entendia que a Esmeralda devia ficar com o Sargento Gomes; e, pior do que isso, que o mesmo Tribunal se tivesse atrevido a discordar do relatório dos psicólogos e ordenasse a entrega da criança ao pai.
Em protesto contra a decisão do tribunal, os Serviços de Pedopsiquiatria do Hospital do Estado decidiram deixar de acompanhar a situação da menor.

O Ministério Público, em vez de, como lhe competia, meter na ordem os psicólogos, ou psiquiatras, do Hospital de Coimbra, obrigando-os a trabalhar para o Estado que lhes paga o vencimento ou determinando a instauração dos competentes processos disciplinares por os referidos técnicos tripudiarem a decisão do Tribunal, fazendo a birra de deixarem de acompanhar a situação, preferiu ir na onda da rua – e de tanta gente importante, como a Drª Maria Barroso, o Dr. Vilas Boas ou a Drª Manuela Eanes – e entrar na novela do jogo do rato e do gato que o Sargento Gomes vem mantendo há vários anos com o verdadeiro pai da criança, continuando a empalear – perdoe-se o plebeísmo, mas não encontro palavra melhor – o sentido real e a eficácia psicológica da decisão judicial.

Parece que o crime compensa, podendo na verdade os psicólogos de Coimbra, assim acarinhados pelo Ministério Público, julgar-se verdadeiramente a última instância, acima e depois dos Tribunais, como já aqui escrevi.
Já tive ocasião de escrever, em crónica anterior, sobre a mudança de atitude da Procuradoria Geral da República, e do Ministério Público que a integra, relativamente a este processo após a nomeação do Conselheiro Pinto Monteiro como Procurador Geral. E de referir que me pareceu de mau agoiro a sua explicitação hierárquica de que tinha dado instruções ao Procurador de Coimbra sobre a posição que a Procuradoria Geral da República - que na fase inicial se filiava nos valores da justiça e do Direito e depois dessa intervenção do Procurador Geral se percebeu passar a alinhar com o gosto da plebe pelo palco mediático – iria passar a defender no processo.

O que é certo é que o Ministério Público, que até então estivera em posição de sintonia com os juízes que se vêm pronunciando sobre o assunto, passou a divergir desse entendimento e a transigir com a decisão do poder popular – que julga com as emoções que os jornais e a televisão lhes insinuam.

3 – Há alguns anos, quando os jornais eram regularmente municiados com informações suculentas relativas a processos judiciais em segredo de justiça, o Professor Freitas do Amaral – com quem não simpatizo – veio apontar ao Ministério Público o dedo acusador como fonte principal dessas notícias.

O dedo apontado não era uma temeridade. Pelo contrário, quer na perspectiva dos interesses, quer no da mera probabilidade, a nenhuma entidade interessaria mais do que a essa magistratura a informação cirúrgica, como então se praticava, sobre os bastidores dos processos em investigação – se é que de investigação se pode falar no que não passa da curiosidade pífia da devassa da vida dos outros.
Tinha também a vantagem de desviar para o fait-divers a falta de sucesso do Ministério Público na verdadeira perseguição dos criminosos – então, como agora, incapaz de levar à condenação judicial a grande criminalidade dos punhos de renda e procurando compensação para esse insucesso na condenação mediática, sem contraditório e sem provas, de quem lhe caísse nos humores.

O então Procurador Geral, Dr. Cunha Rodrigues, lá instaurou contra o Prof. Freitas do Amaral o processo da praxe. Que ficou, como sucede com os outros processos, os relevantes, arquivado.
(Valha-nos que ao menos o Ministério Público não é mais competente nos processos que apenas dizem respeito às suas pequenas vaidades do que nos que respeitam a questões importantes – o arquivamento, ou a absolvição por falta ou irregularidade das provas, ou a prescrição, são, nos processos mediáticos, e por via de regra, os resultados que nos trazem os jornais.)

4 – Votei no Dr. Marinho Pinto para Bastonário da Ordem dos Advogados.
Já o fizera, aliás, nas últimas eleições, em que o Dr. Marinho Pinto perdeu para o Dr. Rogério Alves, candidato das televisões.
Têm estado no centro do debate público as declarações que o Bastonário vem prestando sobre a situação do país, na perspectiva, tradicional na Ordem dos Advogados, da defesa dos direitos de cidadania.
É bom ouvir, por uma vez, uma voz que fuja ao unanimismo e se não renda ao grande bloco central onde medram os negócios à custa do Estado.

Quer no discurso de abertura do ano judicial, quer em entrevista à Televisão, disse sobre a corrupção, em voz alta, o que todos sabemos e dizemos “sotto voce” – que é endémica, e que percorre todos os círculos do poder, da autarquia mais modesta ao Governo mais moderno, seja qual for o partido que o sustenta.
Lembrou também a ineficácia da máquina judicial – e a preguiça e os desvios malsãos que a percorrem.
Não deixou de fora os grandes escritórios de advogados – de Lisboa, como mandam as regras -, que vivem à sombra dos milhões dos negócios que o Estado lhes inventa com carinho, por pareceres que os Serviços podem formular de graça, ou por representação judicial que o Ministério Público deve assegurar.

E cá voltamos ao Ministério Público, regressando ao ponto por onde começámos.
Em círculos, ou, mais precisamente, às voltas.
Como os processos importantes, que também andam às voltas, parece que mexem - mas não saem do sítio.
Até prescreverem, ou acabarem em absolvição, mesmo quando há culpados.
Ao contrário do poema de Jorge de Sena, espero que o Bastonário continue a zurzir, no seu estilo, os mansos costumes indígenas.
E mande lavrar em acta.

*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2008-02-07



















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