1. Depois de aprovada a pergunta na Assembleia e remetida pelo Senhor Presidente da República para o Tribunal Constitucional para “fiscalização preventiva da constitucionalidade e legalidade da proposta de referendo”, tudo se conjuga para que o povo português seja chamado a decidir se concorda ou não “com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Se, na última década, alguma vez deixou de ser tema de debate, a questão do aborto é recolocada na ordem do dia.
2. Vão reaparecer e proliferar teses consistentes e sentenças doutas. Para todos os gostos, evidentemente…
Uns vão voltar a insistir que é um referendo inútil, uma perda de tempo que favorecerá uma crispação que seria evitada se a decisão fosse restringida ao âmbito da Assembleia da República, enquanto outros recordarão que aquilo que em referendo é recusado só em referendo poderá ser permitido.
Uns vão recordar que o “sim”, finalmente, nos vai recolocar no ritmo da Europa, enquanto outros sentenciarão que não será no abandono dos valores que professam que o velho Continente sobreviverá.
Uns novamente dirão que o “sim” no referendo é um sim à liberalização do aborto, enquanto outros voltarão a lembrar que apenas em causa estará a despenalização da mulher que aborta.
Uns defenderão mais uma vez que o “sim” é um grave atentado à vida, enquanto outros insistirão que a mulher tem o direito de decidir sobre a sua vida íntima.
Uns advertirão com redobrada força que o “sim” vai permitir o negócio lucrativo para se executar a morte em mansões de luxo, enquanto, uma vez mais, outros desfraldarão a bandeira do fim do aborto no vão de escada.
Provavelmente, falarão mais eles, os homens, do que elas, as mulheres. E eles descansarão no dia do referendo para que elas votem, porque, pensam eles, já cumpriram o seu papel e afinal essa é uma questão delas…
Parece claro: se em causa está a liberalização do aborto o sim é uma estultice, porque a vida não se discute, antes deve ser favorecida com todo o engenho, dedicação, meios e arte para o seu pleno desenvolvimento e para a sua plena expressão.
Se o sim apenas legalizará a descriminalização do aborto, será essa, certamente, uma questão com problemáticos contornos porque nem tudo o que é legal será moral e que seria então crime se crime não fosse impedir que uma vida, uma vez iniciada, irremediável e definitivamente se pudesse exprimir e desenvolver?
Se em causa está que o sim apenas significará o não julgamento e a não penalização pública da mulher que abortou, muitos e muitas, provável e legitimamente, cederão, porque ninguém advogará o enclausuramento ou o apedrejamento da mulher que abortou, como também ninguém esperará que alguma mulher use como sua coroa de pública glória um aborto que privadamente realizou ou reivindicou… E todas e todos sabem como é importante para a mulher conceber, gerar e dar à luz: ela encontra-se na sua grandeza quando descobre que concebeu, perspectiva-se na sua plenitude quando acaricia no ventre aquele que sonha erguer, diviniza-se quando amamenta aquele que é o seu enlevo.
E todos e todas, ou quase, sabem que a mulher que por circunstâncias penalizantes abortou transporta no seu seio a cruz de uma glória sonhada e irremediavelmente desfeita.
E todas, mas nem todos, sabem que esta questão, provavelmente mais do que todas as outras, é uma questão de mulheres e de homens.
3. Sendo a actividade das instituições de solidariedade e dos seus dirigentes uma actividade com pessoas, de pessoas e para pessoas e tendo essas instituições e esses dirigentes por único lucro da sua actividade o sorriso de esperança das pessoas, nem poderão nem deverão estar à margem de um debate que, muito mais do que qualquer outro, interessa a todas as pessoas. Mulheres e homens, evidentemente, porque esta, como muitas outras, não é uma questão que apenas à mulher diga respeito.
Tanto dirigentes como instituições convivem diariamente com umas mulheres estigmatizadas por abortos realizados ou consentidos e com outras que corajosamente deram à luz filhos que amamentaram (a generalidade) ou filhos que entregaram para crescer em outros berços, porque elas se sentiam incapazes de embalar (alguns casos não tão pontuais como desejariam). Tanto dirigentes como instituições nem condenam umas nem idolatram outras: aceitam caminhar com todas para que todas tenham sempre rumos de esperança. Porque umas e outras são pessoas. E é para as pessoas a arte dos dirigentes e é para as pessoas o espaço das instituições.
Tudo faz crer que o referendo será uma realidade: em consciência se vote. Sem slogans estéreis mas com consciência formada. Votem todas as mulheres e votem todos os homens.
E serenamente saibamos ler o resultado. Sem hossanas e sem cinzas.
E que, decididamente, sem mais referendos do género mas com mais determinação e justiça se caminhe para um amanhã mais feliz para todas e para todos.
E, convictamente, se assumam os ideais, as causas e as realizações humanas como humanas que o são, de mulheres e de homens.
E, doravante, condenem-se as situações de mulheres vitimadas ou condenadas a, sozinhas, transportar um filho que o é também de um pai.
E, ousadamente, saibamos criar condições para que o aborto, legal ou imoral, jamais seja encarado como método de normal contracepção.
E que não haja nem sequer mais uma mulher que seja coagida a encarar um aborto para assegurar um emprego ou uma vitória.
E que as políticas tenham sempre um tom mais familiar que economicista.
E que a educação seja mais da pessoa do que para a tecnologia, mais integral do que experimentalista.
E que a vida seja sempre o fervor dos que vivem… com engenho, arte e sentido de mistério. Porque a vida é tão misteriosa que merece uma permanente postura de encantadora sedução…
* Presidente da CNIS
Data de introdução: 2006-11-09