Obviamente (e felizmente) a globalização não é um processo exclusivamente económico. Não foram apenas as cadeias de valor que ficaram cada vez mais globais e cada vez menos nacionais ou regionais. Também nos planos político ou cultural as coisas vão sendo cada vez mais globais. Por exemplo, a China, país com uma tradição musical muito própria, tem hoje mais alunos de piano que todo o mundo ocidental junto. Os novos Lang Lang estarão em breve por aí!
O processo de globalização foi manifestamente uma coisa boa. A globalização permitiu tirar centenas de milhões de seres humanos de uma situação de pobreza extrema, tornou as endémicas e gigantescas fomes da China ou da Índia, que ceifavam periodicamente milhões de vidas, um facto do passado. No mundo atual morrem muito mais pessoas de excesso de comida que pessoas por carências alimentares.
Embora a guerra não tenha desaparecido – bastam os horrores que nos chegam da Síria para nos pôr em guarda nessa matéria – a verdade é que, segundo uma perspetiva histórica, vivemos hoje num mundo excecionalmente pacífico. Morrem muito mais pessoas devido a acidentes nas estradas que nos conflitos que desgraçadamente ainda ocorrem em algumas partes do planeta.
Claro que como todos os processos históricos de grande dimensão, a globalização reclamou as suas vítimas. Os países de desenvolvimento intermédio, como o nosso, ficaram claramente do lado perdedor. Não é por acaso que Portugal praticamente deixou de crescer a partir da segunda metade dos anos 90 do século passado. Claro que a adesão ao euro também tem a sua quota-parte, quiçá maior, de culpa neste cartório. A diferença está em que aos efeitos da globalização nunca nos poderíamos ter esquivado, já a adesão ao euro foi um erro voluntário, um erro colossal de proporções históricas.
Aparentemente globalização está a perder gás. Os sinais são diversos e perigosos.
No plano político, as duas grandes iniciativas de comércio livre que envolvem os Estados Unidos e as potências europeias e asiáticas, as parcerias transatlântica (com a Europa) e transpacífica (com a Ásia) estão em risco, desde logo porque qualquer dos candidatos á presidência dos Estados Unidos já declarou oposição a esses programas.
Naturalmente que nas democracias os políticos tendem a refletir os movimentos no sentir dos eleitorados. Na Europa e nos Estados Unidos o sentimento antiglobalização está a crescer e o substrato de onde emerge é o mesmo de onde saiu a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, a ascensão de um clown como Donald Trump ao estatuto de candidato credível à presidência dos Estados Unidos e os resultados eleitorais dos diferentes populismos, de esquerda e de direita, na Europa. Na base de tudo isso está a revolta dos que ficaram para trás, dos mais velhos, dos menos qualificados, dos mais pobres.
No plano económico os sinais também são preocupantes.
Do lado esquerdo do gráfico temos a comparação entre o crescimento do comércio internacional e o crescimento do PIB global.
Entre 1975 e 1985 o ratio comércio/PIB é, em média, de 1, ou seja, comércio internacional e PIB cresceram mais ou menos ao mesmo ritmo.
Nos 22 anos que se seguiram até à crise económica, o ratio foi de 2,1, ou seja, o comércio cresceu mais do dobro do PIB. Desde a crise o ratio baixou para 1,5 e a previsão para 2016 é de 0,8, ou seja, algo que não se via nos últimos 30 anos.
Ainda no plano macro há um outro indicador da intensidade da globalização que merece ser olhado – o nível de fragmentação internacional dos processos produtivos, ou seja, a importância das cadeias produtivas globalmente distribuídas.
No passado as cadeias produtivas eram essencialmente regionais ou nacionais. Com a globalização o processo produtivo passou a estar geograficamente mais distribuído. A engenharia pode estar em Sillicon Valley, a produção de componentes pode estar espalhada por várias geografias e a assemblagem final ser feita num local diverso.
Naturalmente que cadeias produtivas globalmente distribuídas aumentam o comércio internacional – engenharia, matérias-primas, produtos intermédios e produtos finais circulam de um lado para outro engordando as contas de importação e exportação de vários países.
A OCDE publicou recentemente um trabalho sobre o tema e embora não tenhamos dados recentes baseados numa perspetiva dos valores acrescentados, o que seria o ideal, aproximações mais ou menos seguras demonstram que a fragmentação internacional das cadeias produtivas está a regredir – é o que se pode ver do lado direito do quadro acima.
Naturalmente que o arrefecimento das trocas comerciais haveria de se manifestar num outro tipo de fluxos - os fluxos financeiros.
Muita da fragmentação das cadeias produtivas foi acompanhada de investimento das empresas americanas e europeias nos países de destino dos segmentos produtivos deslocalizados. Provavelmente muitas das oportunidades que existiam neste domínio estão já exaustas. O investimento direto estrangeiro a nível global está a cair em termos de fluxos embora o stock acumulado continue a crescer.
O investimento direto estrangeiro é apenas uma das formas, provavelmente a mais benévola do ponto de vista do país de destino, de circular capitais.
Os fluxos financeiros transfronteiriços totais estão a regredir. O outstanding total que antes da crise andava pelos 57% do PIB mundial está agora por baixo dos 40%.
Um outro sinal, este mais micro, mas nem por isso menos significativo, foi a recente falência da Hanjin Shipping, Co., um dos maiores grupos de shipping do mundo que deixou 14 biliões de dólares de mercadorias em barcos à deriva por esse planeta fora e os nervos em franja de muitas empresas transnacionais que dependem dos abastecimentos ultramarinos
Também a Maersk, um dos operadores de referência do shipping mundial, declarou recentemente que não pretende aumentar a frota por aquisição de novos navios mas seguir um caminho de aquisições de companhias num sector onde há excesso de capacidade, leia-se falências adiadas.
Não se pense que o fechamento das economias começou agora ou que é o resultado do ascenso dos populismos que infetam a vida política dos nossos dias.
Embora na sequência da crise de 2008/2009 tenha sido possível evitar as consequências catastróficas da imposição de medidas protecionistas “hard-core”, como aconteceu nos anos 30 do século passado depois da Grande Depressão, a verdade é que medidas protecionistas menos espalhafatosas, mas não necessariamente menos eficazes, vêm sendo tomadas um pouco por toda a parte. Só em 2015 a Global Trade Alert registou quase 600 reclamações sobre políticas locais prejudiciais da circulação de mercadorias, trabalho ou capital – um record triste e negativo.
Com o ascenso dos populismos tudo isto pode ficar pior. Um mundo menos global é um mundo menos produtivo mas, sobretudo, é um mundo mais perigoso.
Por estas e por outras é necessário derrotar os populismos. Contudo, sejamos claros. A derrota dos populismos, e o afastamento da possibilidade de regressão da globalização, implicam que não entreguemos os benefícios da globalização a uma ínfima minoria. Precisamos de políticos corajosos que não sucumbam à tentação das soluções fáceis como resolver problemas de imigração construindo muros.
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