In medio virtus


1. "Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto...
Levei água, víveres, sementes.
Não eram sementes de trigo ou aveia, nem de cravos - também não eram sementes de máqinas...
Eram sementes de cabeças de crianças.
Não serão nabos, ou rosas, ou sementes de algodão? Perguntei no ervanário.
Eram sementes de cabeças de crianças...
No quinto (dia) lancei às areias, a toda a volta da casa, até onde podia, todas aquelas sementes que não eram de cravos, nem de trigo, nem de algodão - as sementes -, lancei à minha volta o futuro nascimento, e fiquei no meio do nascimento, cercado pelo futuro nascimento
."

O registo poético permitiu a Herberto Hélder estas metáforas. Na realidade, como sabemos, não há sementes de cabeças de crianças.
Nem de crianças.
Não é por sementeiras, nos campos, que as crianças nascem.
Também não são feitas nas fábricas, em linhas de montagem.
Pelo menos por enquanto, as crianças nascem de uma união entre um homem e uma mulher.
É certo que muitas vezes - cada vez mais vezes - esse homem e essa mulher, os pais de uma criança, a tratam como se ela tivesse nascido da terra - e não a partir de si próprios, da sua própria carne.
Deixando-a ficar à margem das suas vidas, dos seus afectos e dos seus cuidados.

2. Há dias, em Fátima, a CNIS organizou um encontro voltado justamente para a reflexão sobre as formas de melhor proteger essas crianças do abandono, da negligência, dos maus tratos - encontro participado, vivo, atento.
A protecção das crianças é, aliás, já há muitos anos, um terreno de eleição das instituições civis de solidariedade - terreno onde até há muito pouco tempo constituiam a única presença.
Nos últimos anos, a protecção das crianças tem sido um intenso domínio de reflexão e acção da sociedade e do Estado, acompanhando aliás a perspectiva do entendimento da criança como sujeito autónomo de direitos, grata aquisição da civilização.
Este caminho tem promovido o aparecimento, no domínio da protecção, de novas modalidades e respostas, para além daquele acolhimento pelas instituições solidárias que foi, durante muitos anos, e como já disse, a única protecção existente.
É bom que as medidas se diversifiquem, já que assim fica mais fácil adequar as respostas, como é mister, a cada específica situação merecedora de protecção.
Mas não é necessário, para a coexistência de todas elas, tentar desqualificar as medidas que as instituições vêm assegurando. Tentação em que têm caído muitos, desde órgãos do poder político a meios de comunicação social e académicos.
3. Uma dessas novas medidas é a adopção - que é hoje, no discurso oficial, uma espécie de medida topo de gama, verdadeiramente a sinédoque das medidas de protecção.
No plano formal, não parece legítimo opôr dúvidas a uma solução que atribui a uma criança que a não tem uma família normal - onde a criança cresça em idade, em sabedoria e em graça, como se ensinava no catecismo do meu tempo.
E, por isso, todos os procedimentos que retardam a entrega de uma criança a uma família que a adopta são avaliados, à partida, com sinal negativo - pois que dificultam o sucesso do paradigma.
Nessa onda, as instituições de acolhimento, onde as crianças aguardam aquilo a que no jargão social se chama "projecto de vida", estão na primeira linha de fogo dos teóricos de gabinete, que injustamente lhes debitam o tempo porventura excessivo da construção desse projecto.
A questão é que a realidade, e a vida, não cabem no espaço limitado dos gabinetes, nem nos horizontes estreitos dos livros dos "cientistas sociais".
Como escrevi no princípio, as crianças não nascem de semeadura e, para entregar uma para adopção, é necessário retirá-la primeiro - definitivamente, isto é, sem regresso, - da família em que nasceu.
E esta não é, nem pode ser, uma operação mecânica e asséptica.
Trata-se, ao fim ao cabo, de matar, no plano simbólico, os pais, os irmãos, os avós, os bisavós, os tios, os primos, enfim, toda a identidade genética de uma criança, estando nós condenados a confiar na infalibilidade dos psicólogos, dos assistentes sociais e dos magistrados que, em maior ou menor grau, desempenham aqui o papel de aprendizes de feiticeiro.
Eu, por mim, não confio.

4 . No mesmo dia do encontro da CNIS, em Fátima, a 29 de Abril, o Expresso publicava uma entrevista com o Professor Guilherme de Oliveira, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e presidente do Observatório da Adopção, em que esta questão é suscitada. Nestes termos: "Tenho de saber se a adopção deve manter-se como está. Talvez tenhamos de pensar, por exemplo, na adopção aberta - naquela que não corta os vínculos com a família natural, uma adopção em que coexistam as duas famílias..."
Quando estudei Direito em Coimbra, há mais de trinta anos, os jovens que então éramos achávamos que a escola coimbrã, nos grandes debates jurídicos, nunca tomava posições nítidas, extremas, procurando sempre conciliar notas e elementos aparentemente contraditórios.
Os nossos dezoito anos pensavam então que tais posições eram de alguma forma pífias, longe do preto e branco a que o entusiasmo juvenil nos obrigava. O tempo trouxe-me outra perspectiva - que privilegia mais a atenção à realidade do que as grandes proclamações teóricas, tantas vezes tão longe da vida.
Verifico com prazer que a tradição coimbrã se mantém. E que, no aparentemente insanável conflito entre a entrega precoce da criança para adopção e o cuidado em não tomar decisões fatais em relação à família natural sem a necessária ponderação, pretende dar guarida a ambos os interesses.
Vai pela bissectriz, pelo meio.
Que é o lugar da virtude.

* Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2006-05-07



















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