JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Desesperada esperança: O que a pandemia pode trazer de bom

As pandemias são acontecimentos terríveis.
No passado, pestilências diversas deixaram marcas trágicas no percurso da humanidade.
Por exemplo, a peste de Justiniano, ocorrida durante o reinado deste imperador do oriente (século VI DC), provavelmente um surto de peste bubónica, pode ter causado a morte de 25 a 50 milhões de pessoas.
Foi por causa do declínio demográfico e económico das províncias do império do oriente que, um par de gerações depois, uma vaga de guerreiros bárbaros vindos da Arábia pôde criar o que veio a ser o império Omíada. O Islão pôde vingar sobre uma terra dizimada pela peste e exausta da luta permanente entre o império bizantino e o império persa.
A peste negra, no século XIV, terá ceifado 50 milhões de vidas, entre um terço e metade da população europeia da época.
Os germes que os europeus levaram para as Américas dizimaram a população indígena numa proporção porventura superior a qualquer outro evento pandémico registado em tempos históricos.
Mais recentemente, há cerca de cem anos, a peste espanhola pode ter causado a morte de cem milhões de pessoas. Embora o número absoluto de mortes tenha sido elevado, na proporção da população à época, a gripe espanhola teve uma dimensão relativamente pequena se comparada com os surtos do passado.
A pandemia que vamos vivendo já reclamou 3 milhões de vidas. Segundo qualquer comparação histórica trata-se de um evento que, embora aterrador nas suas consequências imediatas, é, felizmente, de proporções quantitativamente modestas.
No passado, não obstante os custos terríveis que a geração da peste sofreu, as consequências económicas de longo prazo não foram necessariamente negativas.
Por exemplo, na sequência da peste negra os salários reais subiram (havia poucos braços para trabalhar), a escassez de trabalho obrigou a um aumento da eficiência na exploração dos campos, a desigualdade social abateu (as heranças múltiplas ajudaram), e as gerações seguintes puderam recolher os benefícios de todo um reequilíbrio entre recursos e população.
Naturalmente que o covid19 não vai provocar um rebalanceamento demográfico e económico comparável com a peste negra ou a peste de Justiniano – as escalas não são comparáveis.
Contudo, é provável que esta pandemia possa trazer mudanças profundas, duradouras, muitas delas positivas, nas economias deste nosso vasto mundo.
Vejo três grandes domínios nos quais podemos esperar desenvolvimentos positivos a médio prazo.
- Integração Europeia
A resposta à crise pandémica obrigou a EU a dar passos simplesmente impensáveis no passado recente. Depois de anos a empurrar com a barriga o tema da emissão de dívida solidária, eis que a União se vai endividar em várias centenas de biliões de euros para poder prestar subsídios não reembolsáveis aos estados membros. Uma emergência produziu o que anos e anos de debate não tinham conseguido! A aquisição conjunta de vacinas para todos os estados da União, não obstante os aparentes erros de processo, é também um passo no caminho certo.
- O novo olhar para a Política Fiscal
Felizmente que desta vez os estados não se encolheram em relação à Política Fiscal, nomeadamente na despesa pública, como tinha acontecido na crise financeira de 2008/2009.
A resposta global da Política Fiscal, em termos puramente quantitativos, já vai em cinco vezes a resposta à crise financeira.
No plano qualitativo também há novidades. A despesa pública entrou por domínios novos como, por exemplo, o apoio massivo à manutenção do emprego nas empresas.
Por outro lado, contrariamente ao que aconteceu há uma dúzia de anos não vemos ninguém em stress com os mercados de dívida. O homem do saco já não assusta ninguém.
Na Europa continuam suspensas as regras do controlo orçamental e nos Estados Unidos não há sinal que as autoridades estejam particularmente preocupadas com a dimensão do deficit. Pelo contrário, está em estudo um projeto de investimento público gigantesco que apenas em parte se prevê seja pago com aumento de impostos sobre as empresas e os mais ricos.
- Justiça Fiscal
Sempre defendi que a saída desta crise pandémica abriria uma janela de oportunidade, porventura irrepetível, para repensar globalmente os sistemas fiscais.
Defendi e defendo que a reforma fiscal deveria assentar três pilares básicos: a) - tributar mais a riqueza e reduzir a tributação sobre o rendimento; b) – maior progressividade na tributação do rendimento, c) – mínimo de harmonização internacional na tributação das multinacionais.
Alguns dos desenvolvimentos recentes foram mais longe do que eu poderia antecipar na mais otimista das minhas previsões.
O Fundo Monetário Internacional, o velho guardião da ortodoxia fiscal, acaba de propor o lançamento de um imposto sobre as fortunas, nomeadamente as que engordaram com a pandemia.
Os Estados Unidos eram o grande obstáculo à revisão dos modelos que têm permitido às multinacionais usufruir de níveis de tributação global escandalosamente baixos. A administração Biden acaba de propor um sistema que abre caminho a um acordo na OCDE sobre este tema até agora considerado intratável. É certo que ainda há muito trabalho a fazer, mas um acordo parece viável num horizonte não muito longínquo.
A capacidade das multinacionais para aproveitar a permissividade fiscal de alguns estados famintos de investimento externo, pode estar a aproximar-se do fim.
Claro que nem tudo é positivo no que podemos prever à saída da pandemia. No passado, as grandes crises (pandemias, guerras) permitiram a redução das desigualdades na distribuição da riqueza e dos rendimentos.
Na crise atual, a intervenção dos bancos centrais, ao provocar um aumento colossal dos preços dos ativos financeiros (e mesmo de alguns ativos tangíveis), tem alargado mais e mais o fosso entre ricos e pobres. Não se vê fim à vista neste processo.
Em parte, é nisto que o FMI se baseia para propor um imposto, excecional que seja, sobre as fortunas.
Não vai ser fácil lidar com isto. Uma alteração do curso da política monetária por parte dos bancos centrais pode provocar uma correção súbita e de grande dimensão no valor dos ativos. O receio das consequências dessa correção tem mantido os bancos centrais sequestrados pelos investidores nos mercados financeiros.
Um dia vai ser necessário desatar o nó.
Embora seja impossível antecipar as consequências económicas de uma correção forte nos mercados financeiros, não antecipo que uma tal correção tenha de provocar necessariamente uma recessão profunda e demorada. Muito menos nada que se pareça com o crash de 1929.
Contudo, seria imprudente dizer que o risco é zero.
Como sempre, temos agora um misto de sinais positivos e de riscos. Entre o que pode correr bem e o que pode correr mal há um equilíbrio instável, no entanto, tenderia a arriscar uma ficha num balanço de riscos globalmente positivo.
Talvez o mais positivo de tudo tenha sido a queda com estrondo de muitos tabus que vinham da velha economia, da economia errada que, infelizmente, ainda se projeta em má política e em mau comentário mediático.
George Steiner (a falta que nos faz) costumava lembrar que, quinhentos anos depois de Copérnico, ainda dizemos que o Sol se levante e se põe. Os erros têm uma endurance incrível. De qualquer forma a pandemia parece ter eliminado um par deles para sempre. Assim seja!

 

Data de introdução: 2021-05-06



















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