ASSOCIAÇÃO DOS FAMILIARES DAS VÍTIMAS DA TRAGÉDIA DE ENTRE-OS-RIOS, CASTELO DE PAIVA

Casa de acolhimento «Crescer a Cores» perpetua a memória das vítimas

Crescer a Cores é a colorida proposta nascida de uma das mais negras e escuras noites que Portugal viveu no passado recente. Aliás, a primeira grande tragédia do novo milénio foi vivida e sofrida, maioritariamente, pelas gentes de Castelo de Paiva, em especial da freguesia de Raiva, mas não só… No total, foram 59 vidas ceifadas, passaram 20 anos no passado dia 4 de março, pelo desabamento da ponte Hintze Ribeiro, que, em Entre-os-Rios, ligava os concelhos de Penafiel e Castelo de Paiva. Dessa noite triste nasceu a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios, uma obra social que já acolheu 102 jovens em risco ao longo de 12 anos e se prepara para acolher vítimas de violência doméstica.
Era uma noite muito agreste, a chuva há dias que não dava tréguas e as águas do rio Douro corriam desembestadas.
Com a queda do tabuleiro da ponte centenária foram arrastadas para a morte os 53 ocupantes de um autocarro, de regresso de uma excursão, e ainda mais seis de outras três viaturas ligeiras.
O acidente e o doloroso calvário das famílias das vítimas até que os corpos fossem encontrados consternou o país inteiro e o espírito solidário dos portugueses, uma vez mais, emergiu.
Em resposta, os familiares das vítimas, que inicialmente criaram uma comissão para lhes dar voz, decidiram canalizar essa solidariedade dos portugueses para a criação de um projeto social que perpetuasse a memória das vítimas da ponte Hintze Ribeiro.
É assim, que cerca de um ano e um mês depois do trágico acidente, nasce a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios (AFVTE).
“Na altura da tragédia tínhamos diversos donativos que foram enviados de diversos pontos do país e vimo-nos confrontados com a situação de tais verbas já não serem necessárias para as famílias das vítimas e decidimos criar uma obra social”, começa por dizer Augusto Moreira, presidente da AFVTE, acrescentando: “Como no acidente também tinham falecido muitas crianças, decidimos criar um projeto social que fosse diferente do que já havia no meio em que estamos inseridos. Acima de tudo, achámos que devíamos construir algo diferente, pois nascemos de uma causa diferente, de uma tragédia. E pensámos que podíamos ajudar pessoas que são vítimas de uma tragédia familiar, pessoas muitas vezes vítimas de maus-tratos e de outras situações no seio da família”.
Decidida a criação de uma obra social, os responsáveis poderiam ter optado por respostas sociais que interviessem diretamente na comunidade local, como um centro de dia, um serviço de apoio domiciliário ou outro, mas a escolha recaiu numa valência de abrangência nacional.
“Nesse momento, considerámos a lacuna existente no nosso concelho, e até no distrito de Aveiro, que era uma Centro de Acolhimento Temporário para jovens em situação de risco e em perigo. Esse foi o caminho que quisemos seguir e, até pelo luto que estávamos a viver, quisemos ir de encontro a essa perceção de que há muita gente abandonada e que precisa de apoio. Nós sabemos que em Castelo de Paiva há muito idosos, é um concelho com uma população muito envelhecida, mas há muitas respostas sociais nesse âmbito e a grande lacuna era nessas respostas de acolhimento a crianças e jovens”, explica, lembrando que a instituição quis, desde logo, ir mais além do que já existia: “E o nosso desafio foi ainda maior, porque decidimos abrir uma resposta até aos 18 anos e não apenas até aos 12 anos. Nós que vivemos um grande desafio, que foi a tragédia da ponte, também queríamos esse desafio social e entendemos que a melhor forma de dignificarmos o nome das 59 vítimas era a abertura de um centro de acolhimento para jovens que precisam tanto do nosso apoio”.
No fundo, o propósito, por todo o historial da instituição, foi sempre dar esperança a novas vidas.
“O grande objetivo era que o projeto fosse o seguimento daquilo que vivemos. Nós podíamos ter ido cada um para sua casa, ficávamos quietos e não nos envolvíamos no desafio que é criar um projeto social. E esse desafio, para nós, era aliciante, porque percebíamos que havia muito jovem vítima de maus-tratos. Então, se conseguíssemos dar uma vida nova a esses jovens era, no fundo, dar seguimento àquilo que nós vivemos. Ou seja, percebemos que depois da morte há outra vida e esses jovens muitas vezes também estão adormecidos, de certa forma, mortos no seio das suas famílias. E, assim, achámos que lhes devia ser dada a dignidade que todas as pessoas merecem e o apoio que muitas vezes não têm dos pais. Nesse sentido, o centro de acolhimento foi o primeiro desafio que tivemos”.
E 20 anos depois da tragédia, 19 da fundação da instituição (já no próximo mê de abril) e 12 da abertura do, então, Centro de Acolhimento Temporário, hoje Casa de Acolhimento «Crescer a Cores», Augusto Moreira refere que “o balanço é extremamente positivo”.
“Foi com grande espírito de sacrifício e foi preciso muita força e boa-vontade para nos envolvermos neste projeto, mas é um balanço extremamente positivo”, assegura, justificando: “E a melhor prova disso é o exemplo que tem vindo dos jovens. Quando eles saem desta casa, temos a noção do dever cumprido e vemos que o nosso trabalho tem sido válido e útil na prestação dos cuidados aos jovens. Não quero com isto dizer que somos os melhores, mas somos, seguramente, dos melhores. Por exemplo, temos aí um jovem, que já tem 20 anos, mas que quer continuar connosco. Já tem um apartamento e tudo, mas continua a ter um quarto na instituição, onde gosta mais de estar. Isto é a prova do nosso bom trabalho e da dedicação de todos os trabalhadores no apoio aos jovens”.
Atualmente, a instituição acolhe 16 jovens, entre os 10 e os 18 anos, e funciona com uma equipa de 21 pessoas. Para além do acolhimento a crianças e jovens em risco, a Associação ainda desenvolve formação junto de populações desfavorecidas, mas, de momento, a resposta está suspensa devido à pandemia.
Satisfeitos com o trabalho até agora desenvolvido com os 102 jovens que até agora passaram pela instituição, os responsáveis pela AFVTE almejam mais e já puseram mãos à obra.
“E o balanço é também muito positivo porque já temos um novo desafio que queremos abraçar. E esse próximo grande desafio, a que a Segurança Social de Aveiro já mostrou abertura para a assinatura de um acordo atípico, são as Casas Abrigo. Esta é outra resposta inexistente aqui no concelho e praticamente inexistente no distrito de Aveiro. O nosso projeto tem algumas características únicas, pois pretendemos apoiar pessoas vítimas de violência doméstica, mas de forma individualizada. Todas as vítimas que para cá vierem vão ter a sua privacidade e autonomia. Esta dinâmica que criámos vai no sentido de não disponibilizar respostas que as outras instituições da zona já oferecem, mas dar resposta a necessidades que ainda não as têm. Queremos ser diferentes, porque a Associação também nasceu de uma causa diferente”.
Assim, o novo grande projeto da instituição é uma resposta social direcionada para a problemática da violência doméstica, promovendo uma resposta de acolhimento.
“O nosso primeiro trabalho foi perceber como funcionam estas respostas de acolhimento mais tradicionais e perceber ainda os constrangimentos que lá se sentiam. Após muita pesquisa e investigação, conseguimos perceber que os principais constrangimentos nas casas de acolhimento para vítimas de violência doméstica eram a falta de autonomia dessas pessoas e os conflitos gerados, porque, apesar de partilharem histórias semelhantes, todas partilham os mesmos espaços e nem sempre de forma pacífica”, começa por explicar Marlene Gomes, diretora-técnica da AFVTE, revelando que o objetivo da Associação “é apostar na inovação social e, no sentido de dar uma melhor resposta a estas vítimas, decidiu avançar para um projeto de casa individuais, oito de tipologia T2 e duas T3”.
Desta forma, as utentes “podem trabalhar a sua autonomia, para além de que têm mais privacidade”, refere a técnica, acrescentando: “A questão da autonomia é muito importante para estas mães que nos chegam numa situação de grande vulnerabilidade e fragilidade, por isso esta resposta dar-lhes-á a possibilidade de viverem em família com os seus filhos, tendo em cada casa tudo o que é necessário para tal, não tendo que partilhar espaços com as outras famílias”.
Contudo, tal como muitos outros projetos, a sua concretização depende de financiamento que a instituição não consegue por ela própria, estando para já a aguardar melhores dias e candidaturas a fundos europeus.
“Estamos à espera de medidas de apoio para podermos avançar com a construção, pois, naturalmente, a instituição não tem capacidade financeira para o fazer. Este é um projeto que rondará os 700 mil euros, mas estamos à espera de alguma medida comunitária que possa financiar a execução do projeto. Pensamos que a Segurança Social já incluiu este projeto nos possíveis financiamentos, o que nos dá algumas garantias, porque este é um projeto que interessa ao distrito. Já temos tudo preparado, temos terreno e temos projeto aprovado, só falta mesmo o financiamento para o colocarmos em marcha”, afirma Augusto Moreira, que ainda assim, garante que a instituição “está saudável financeiramente”.
“No início foi muito complicado, porque, quando foi para construir o centro de acolhimento, o Estado, primeiro, comparticipou a 75%, mas depois fez uma reestruturação ao projeto, o que nos obrigou a grandes investimentos. Foi uma situação difícil, até porque as instituições bancárias, como não conheciam a instituição, levantaram dificuldades para fazer os empréstimos que necessitávamos. Mas a nossa postura também aqui foi a de sempre e que já tínhamos tido com as verbas dos donativos oferecidos às famílias das vítimas: transparência e rigor. Este tem sido o nosso caminho, muita transparência, muito rigor e muito empenho de todos. Neste momento, a instituição está saudável financeiramente. No entanto, temos alguns projetos, por exemplo, precisamos de fazer algumas obras aqui na casa de acolhimento, mas, para já, não as conseguimos fazer com recursos próprios”.
Tal como todos os demais portugueses, e não só, o último ano foi marcado pela pandemia de Covid-19. Na Casa de Acolhimento «Crescer a Cores» não foi diferente.
“Tal como toda a gente, aqui também fomos apanhados de surpresa, mas foi apenas mais uma, pois nós estamos habituados a surpresas. Criámos logo as dinâmicas necessárias para manter os 16 jovens em casa e começou logo por um investimento de cerca de três mil euros para termos internet na instituição toda e, assim, proporcionar-lhes as melhores condições para assistirem às aulas online. Perante a necessidade de computadores para todos, a própria comunidade envolveu-se para resolver o problema. Os jovens é que não podiam ser prejudicados, por isso, tudo fizemos para que assim fosse. É certo que foi difícil manter os jovens isolados e fazê-los entender que tinham que ficar na instituição, no fundo, presos, mas esse sentido de dificuldade a que estamos habituados acabou por se tornar também fácil. Aqui, uma palavra para a diretora-técnica e para os trabalhadores que têm sido excecionais e nunca desistiram”, sustenta o presidente da instituição.
Depois de neste ano já ter trabalhado na cozinha e ter desempenhado outras funções que não são propriamente de uma diretora-técnica, Marlene Gomes é clara: “O último ano tem sido um desafio”.
Para a responsável pela «Crescer a Cores», “esta é uma casa para crianças e jovens e estes não têm tanta capacidade para entender tudo isto que estamos a viver”.
Para além de mais, “esta é uma população que precisa muito de socializar e este último ano foi marcado por um confinamento doloroso para estes jovens, porque estamos a falar de jovens com grandes comprometimentos a nível cognitivo e outros ao nível da saúde mental, o que naturalmente lhes vai causando imensa ansiedade no que se refere a tudo o que está a acontecer”, refere, sublinhando: “Acima de tudo, tem sido um desafio para os profissionais que aqui trabalham”.
Dificuldades à parte, como definir a instituição em uma palavra? “Família, porque nós somos uma família e agimos como tal. Protegemo-nos uns aos outros, muitas vezes choramos juntos… Obviamente, nós adultos temos que ter mais cuidados na exteriorização das emoções, mas quando temos que chorar com os miúdos também o fazemos. Eles percebem que nós sentimos o que eles sentem, pelo que não há melhor palavra para definir o ambiente da nossa casa do que família”, frisa Marlene Gomes.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2021-03-10



















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