JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

As gigantes da tecnologia (2): Um mundo dividido em dois? Ou em três?

Parece claro que, aos poucos, o mundo se vai dividindo entre as esferas de influência chinesa e americana.

Dentro de poucos anos a China será a maior economia do mundo – já é a maior se medirmos a dimensão das economias segundo paridade de poder de compra – e a América pode ter entrado num processo de decadência irreversível.

Donald Trump não é só uma aberração pessoal e política – é também um sinal dos tempos, um sinal de um império que aborda, mesmo sem se dar conta, o limiar do seu apogeu e início da sua decadência.

A luta pela supremacia política a nível planetário não será um remake da guerra fria quando o mundo vivia num regime bipolar com duas superpotências – o mundo que aí vem será muito mais complexo que aquele que saiu da segunda guerra mundial.

Se a União Soviética foi vencida pela economia já não vai ser fácil vergar a China por esse lado. Aos poucos a sociedade chinesa está a fazer o seu caminho de transformação de uma economia dependente das exportações e do investimento massivo numa economia de base de mercado interno e de consumo privado. É um processo que vai levar alguns anos, mas que já está em marcha.

A emergência económica da China fez-se no quadro de um processo que temos chamado de “globalização”, mas que eu prefiro chamar de “grande unificação”.

Esse período parece estar a chegar ao fim. A “grande unificação”, porventura, já não serve os interesses do capitalismo e, por outro lado, a China já não precisa dela. Por isso, terá o seu termo e conhecerá alguma reversão.

Aparentemente, os sinais mais visíveis do início da “grande separação” têm surgido no âmbito das indústrias das telecomunicações e dos serviços da internet.

Parece claro que a próxima geração das tecnologias de comunicação, o 5G, vai surgir com o mundo dividido em dois, de um lado os padrões ocidentais, do outro, os padrões chineses.

Os serviços de internet, provavelmente seguirão o mesmo caminho. A China já era, de certa maneira, um mundo aparte, em matéria de internet. A China é um estado totalitário que procura controlar tudo o que os cidadãos fazem ou leem. A China nunca poderia viver bem com um meio de comunicação como foi pensado pelos utópicos criadores da internet: livre, democrático, não hierárquico, ou seja, sem “dono”.

Por exemplo, grande parte dos serviços da Google na China estão bloqueados pelas barreiras impostas pelo estado chinês. Em Hong Kong, onde a situação era um pouco mais permissiva, o banimento da Google está agora ao nível do resto do país. A Google, que chegou a ter uma quota de mercado de quase 40% na China, tem hoje menos de 2%.

Há pouco tempo a China apresentou uma proposta de revisão do modelo de internet.

A proposta da China era de uma nova estrutura em que a rede não pertence a indivíduos, pelo menos em teoria tratados como iguais, mas aos estados.

O modelo atual tem problemas sérios como temos visto com as infâmias das redes sociais, contudo, as soluções boas não passam por eliminar o carácter democrático e não hierárquico da rede e, felizmente, não vejo no ocidente grande vontade de mexer na estrutura atual da internet como também não vejo que a China encontre vantagens em deixar de seguir o seu caminho – acredito que a separação será inevitável.

O ouro do século XXI chama-se dados, nomeadamente dados pessoais. Se ao longo do século XX muito da geopolítica se fez pelo ouro da altura, o preto e malcheiroso petróleo, é sobre os dados e quem manda neles que vamos ver agora as linhas de fratura.

No fundo a questão é: de quem é o ouro e quem pode tirar partido dele?

Até agora tem sido fartar vilanagem – as gigantes tecnológicas têm utilizado a seu bel prazer os dados pessoais dos utilizadores fazendo lucros fabulosos e, pelo caminho, algumas malfeitorias manifestamente ilegais com foi o caso entre a Facebook e a Cambridge Analytics.

Creio que estamos todos de acordo que uma reforma é necessária, o estado atual das coisas não pode continuar. É nas soluções que vamos percorrer caminhos diferentes. Um estado liberal decente haverá de criar regras que permitam que cada cidadão controle os seus dados pessoais, um estado totalitário verá aqui um meio de controlar os cidadãos.

Em cima disto coloca-se um problema adicional. Os dados circulam hoje pelo mundo fora e circulam mais facilmente que as mercadorias e os capitais. As empresas que recolhem e guardam os dados são multinacionais e sujeitas a muitas jurisdições. Pode dar-se o caso de dados pessoais, que sendo corretamente protegidos na geografia onde são gerados, fiquem disponíveis em geografias onde essa proteção não existe e onde podem ser utilizados para os fins mais abjetos.

Acontece também que a situação é mais perigosa com os dados do que com as mercadorias. Por exemplo, na Europa só podem circular produtos que obedeçam a um conjunto de normas independentemente de onde venham. Claro que que se pode fazer batota com as normas. Contudo, uma vez detetado o esquema, os produtos podem ser destruídos e o dano, em princípio, cessa.

Com os dados não é assim - os dados são eternos.

É por isso que na crónica anterior eu dizia que o que chamo de “grande separação”, que o fim do sonho utópico da “grande unificação”, pode ser indispensável para proteger as sociedades democráticas e para sua sobrevivência. Para termos a certeza que a privacidade dos cidadãos está minimamente garantida e que os dados não terão um uso abusivo é necessário impor limites à sua circulação.

E por aqui não vai passar apenas a linha de fratura entre a totalitária China e o liberal ocidente, também o ocidente se vai dividir.

Neste particular, a América (e eventualmente o mundo de influência anglo-saxónica) e a Europa estão a percorrer caminhos divergentes.

Na Europa existe uma grande preocupação com a segurança dos dados pessoais estando em vigor legislação apertada na matéria (GDPR). Nos Estados Unidos a preocupação com a privacidade e segurança dos dados é muito menor. Por exemplo, é muito mais fácil para uma empresa de comunicações nos Estados Unidos conhecer e utilizar informação sobre a localização dos utilizadores de dispositivos eletrónicos do que na Europa.

Ainda há pouco tempo o Tribunal Europeu de Justiça reconheceu que o “escudo de privacidade” que impede a transferência de dados europeus para outras jurisdições pode não ser totalmente seguro.

Em parte, será, porventura, o reflexo de um tema cultural – os europeus serão mais ciosos da sua privacidade, mas é também um tema político - os atuais dirigentes americanos têm enorme dificuldade em reconhecer que os mercados deixados entregues a si mesmos criam muitas ineficiências e que, por isso, regulação é necessária.

Há também a maldita economia. A verdade é que as empresa que hoje dominam os serviços da internet e que fazem com isso lucros fabulosos são ou americanas ou chinesas – a Europa não tem um único gigante nesta área.

A União Europeia está a produzir a legislação mais avançada do mundo nesta matéria que vai fazer a vida das gigantes tecnológicas muito mais difícil.

O tolo do Trump brada que é protecionismo e ameaça com sanções comerciais. Mas Trump passará, contudo, mesmo uma nova administração americana mais lavada de ideias e pessoas, não deixará de proteger as empresas americanas.

Também por aqui passará uma linha de fratura, mas, ainda que para desgosto dos atlantistas mais convictos, talvez seja indispensável para que continuemos a viver como seres livres.

 

Data de introdução: 2020-10-08



















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