FEVEREIRO 2020

Alta clínica sem alta social

1. Após a restauração do regime democrático, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi adquirindo ao longo dos anos um carácter emblemático na sociedade portuguesa, devendo-se-lhe, em larga medida, a melhoria das condições de vida e de saúde dos portugueses e o correspondente aumento da esperança média de vida. Razão suficiente para não ser controvertido e merecer o reconhecimento de maior conquista da democracia decorrente da Revolução do 25 de Abril.
Trata-se de um Sistema que garante o acesso universal à prestação de cuidados de saúde, assegurados pelo Estado, de forma tendencialmente gratuita – o que, exigindo uma avultada afetação de recursos financeiros, através do Orçamento do Estado, recomenda, em contrapartida, a respetiva gestão de forma criteriosa e sem desperdícios desses mesmos recursos.

2. Um dos aspetos que, desde há vários anos, vem sendo identificado como prejudicando a melhor afetação dos recursos alocados ao funcionamento do SNS consiste no facto de existir um número muito significativo de pessoas que, após um episódio de internamento hospitalar e a prestação dos respetivos cuidados diferenciados, são objeto de alta clínica sem poderem abandonar o estabelecimento de saúde por não disporem de apoio familiar nem se configurar nenhuma outra instância de acolhimento residencial que as receba.
Trata-se das situações geralmente designadas como sendo de “alta clínica”, sem possibilidade de “alta social”.
Informações recentemente vindas a público referem como sendo cerca de 2.000 as situações atualmente verificadas, que correspondem ao referido constrangimento, com predomínio dos estabelecimentos hospitalares existentes nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.
É igualmente referido, pelas autoridades de gestão hospitalar, que o custo, para o SNS, da manutenção dessas pessoas em situação de internamento hospitalar, após a “alta clínica”, é de cerca de 400,00 euros por dia e por cama.

3. Este fenómeno é antigo, tendo sido em várias ocasiões objeto de tentativas de resolução ou de remediação.
Levada a cabo ainda na última década de 90, a primeira experiência consistiu numa figura, denominada Hospitel – procurando fundir o conceito de hospital com o de prestações de natureza hoteleira. De sucesso inexpressivo.
Mais recentemente, no nº 8 da Cláusula I do Anexo II – Da Saúde, o Compromisso de Cooperação para o Sector Social e Solidário para 2015/2016 estabelecia que “deve ser acautelada a manutenção e existência de vagas em ERPI para retorno ou primeira residência de idosos que estejam internados em hospitais do SNS, mediante acordo de cooperação específico para esse efeito a propor em sede de CPSS, até 30 de abril de 2015” – remetendo para acordos tripartidos entre Instituições Particulares de Solidariedade Social e os Ministérios da Saúde e da Segurança Social.
Porém tal cooperação nunca se veio efetivamente a concretizar, embora seja recorrente a prática de os Serviços dos Centros Distritais de Segurança Social, em articulação com o Serviço Social dos Hospitais, encaminharem utentes nestas situações para colocação em Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI) da rede solidária, no âmbito da quota de lugares nessas Estruturas disponibilizados para colocação direta pela Segurança Social, por força dos acordos de cooperação em vigor.
Tal procedimento sugere de forma clara que a colocação em ERPI constitui a situação típica de resolução desta descontinuidade entre alta clínica e alta social; e só pela inexistência de vagas em número suficiente nessas Estruturas é que a questão aqui colocada assume a dimensão quantitativa referida.
Por outro lado, o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, de 19 de Dezembro de 1996, subscrito pelo Primeiro-Ministro, pelos Presidentes da ANM e da ANAFRE e pelas Organizações Representativas das Instituições de Solidariedade, veio conferir enquadramento às modalidades de cooperação multilateral das diversas entidades públicas com as Instituições do Sector Solidário, designadamente para “o desenvolvimento de uma rede de apoio social integrado, contribuindo para a cobertura equitativa do País em serviços e equipamentos sociais”, que “envolverá uma atuação de forma conjugada, em todos os tipos e áreas de intervenção, abrangendo domínios da competência de vários ministérios, nomeadamente Solidariedade e Segurança Social; Saúde …” (Cláusula II – Cooperação).
Sob a inspiração desse Pacto de Cooperação, o alargamento do modelo português de cooperação entre o Estado e o Sector Social e Solidário, primitivamente abrangendo apenas as respostas sociais do âmbito do MTSSS, mas alargado, a partir justamente do Compromisso de Cooperação para 2015/2016, aos Sectores da Formação Profissional, da Saúde e da Educação, de harmonia com o Decreto-Lei nº 120/2015, de 30 de Junho, e que se manteve nos Compromissos de Cooperação para 2017/2018 e 2019/2020, veio conferir o desejável enquadramento normativo para modalidades de cooperação multilaterais, participando das competências de diversos departamentos do Estado – como se afigura ser o caso da necessidade de resposta institucional para os referidos cidadãos que, não necessitando mais de cuidados diferenciados hospitalares, permanecem acolhidos nos Hospitais do SNS, desperdiçando recursos e sujeitando os utentes a riscos de saúde acrescidos.
Embora com significado marginal, face à dimensão das necessidades, existiram já algumas experiências de acordos de cooperação tripartidos, entre Instituições Particulares de Solidariedade Social, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e o Ministério da Saúde, para o funcionamento da resposta social “Unidade de Apoio Integrado”, que, embora pela caracterização normativa se destine ao acolhimento residencial de pessoas com dependência, pode permitir uma adaptação a uma caracterização mais ampla dos respetivos utentes.
Concluindo: sem soluções a situação das pessoas que, após um episódio de internamento hospitalar e a prestação dos respetivos cuidados diferenciados, são objeto de alta clínica sem poderem abandonar o estabelecimento de saúde por não disporem de apoio familiar nem se configurar nenhuma outra instância de acolhimento residencial que as receba, com custos excessivos para o SNS e entupindo os hospitais?
Há soluções: em condições a concertar em sede de cooperação, as Instituições de Solidariedade podem dar o seu contributo para que muitos concidadãos que têm alta clínica e não têm alta social encontrem uma casa e condições para viver com dignidade.

Lino Maia

 

Data de introdução: 2020-02-06



















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