HENRIQUE RODRIGUES

Respeito

1 – Tem suscitado amplo debate na sociedade portuguesa, designadamente nos meios de comunicação social, a importante questão da Lei de Bases da Saúde, designadamente quanto ao modelo e à forma como há-de a mesma Lei conformar-se com os princípios do Serviço Nacional de Saúde consagrados na Constituição da República.
Embora ao debate propriamente parlamentar tenha sido destinada apenas uma hora dos trabalhos do Plenário, a imprensa foi-nos dando conta, ao longo dos meses, das diferentes propostas de Lei e das principais posições dos partidos com representação parlamentar e das corporações da Saúde, em torno da nova Lei.
Recordemos que havia fundamentalmente duas perspectivas em confronto:
- uma, que diríamos mais fiel à matriz inicial do Serviço Nacional de Saúde, tal como foi criado por António Arnaut, então Ministro dos Assuntos Sociais, assente na provisão pública dos cuidados de saúde, através de uma rede de serviços e equipamentos de saúde pertencentes ao Estado e por ele geridos, embora permitindo, para completude da prestação de cuidados e na estrita medida do necessário para esse efeito, a participação complementar dos operadores privados.
Tal proposta, alicerçada num projecto de Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde – designado “Salvar o Serviço Nacional de Saúde” -, elaborado e apresentado há cerca de dois anos por António Arnaut e João Semedo, no Convento de São Francisco, em Coimbra - merecia, com pequenas variações, o apoio do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda e de uma parte do Partido Socialista;
- outra, mais harmonizada com as feições que o SNS foi adquirindo ao longo dos anos, adaptado que tem sido à progressiva incorporação das respostas do Sector Social e do Sector Privado lucrativo no Sistema de Saúde  que temos, através de sistemas de acordos, convenções ou parcerias público-privadas com o Estado.
Esta segunda proposta assentava nas conclusões de um grupo de trabalho, coordenado pela antiga Ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira, nomeado pelo actual Governo para esse efeito; e, nesta perspectiva da coexistência de resposta pública, social ou privada no âmbito do Sistema Nacional de Saúde, assegurava o apoio do Partido Social Democrata, do Centro Democrático e Social e da outra parte do Partido Socialista.
Sabemos que as parcerias público-privadas não deixaram grande nome na praça, havendo ainda hoje a convicção generalizada de que se tratou, principalmente no que toca às parcerias no âmbito das grandes obras públicas, de uma forma iníqua de partilha dos riscos – ficando o risco e os prejuízos por conta do Estado e as vantagens financeiras para arrecadação privada.   
Mas não é a avaliação de um ou outro modelo de configuração do Serviço Nacional de Saúde, e a participação do Sector Social e do Sector Privado nele, que me traz ao tema.
Já falei aqui por diversas vezes do que penso a este respeito – e para lá remeto.
Não: o meu ponto é que, seja um ou seja outro o desenho legislativo do SNS, ambos são legítimos, no sentido de que ambos têm cabimento no âmbito da previsão constitucional (do artº 64ª da Lei Fundamental).
Correspondem, certamente, a diversas e divergentes opções ideológicas, podendo cada Governo ou cada maioria parlamentar ir variando o formato desse Serviço Público essencial.
Mas o que o artº 64º da Constituição estabelece é que, tendo todos os cidadãos “direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover” (artº 64º, 1), tal “direito é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (artº 64º, 1., a).
Quanto à concreta composição orgânica ou no que respeita à participação dos diversos sectores da economia no SNS, a disposição constitucional é aberta, permitindo os afeiçoamentos que cada Governo lhe queira imprimir.

2 – Passa-se algo semelhante no que respeita à Educação.
Ainda todos nos lembramos do aceso debate que ocorreu na fase inicial do actual Governo, a propósito dos contratos de associação – forma de fazer o Sector Privado integrar a rede nacional de ensino, fundamentalmente ao nível do ensino básico e do secundário – e dos cortes levados a cabo pelo Governo nesses contratos.
Tal debate centrou-se fundamentalmente na figura da Secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, por um lado; e nos proprietários dos colégios, por outro.
(O debate teve também algum envolvimento da Igreja Católica, na condição de responsável por vários estabelecimentos de ensino afectados.)
Também não é o sentido da minha opinião de fundo sobre este tema que vem ao caso desta crónica (embora entenda ser significativa a diferença entre o título da eventual participação das instituições de solidariedade no âmbito destes contratos de associação e a sua legitimidade no que tange à acção social: só aqui tem sentido material falar de solidariedade.)
Mas o que pretendo significar é que, igualmente ao que se passa no campo da saúde, as diversas formas de modulação da participação do sector social ou do sector privado na rede escolar do ensino básico e secundário são legítimas à face da Constituição, dependendo das opções ideológicas ou programáticas de cada Governo ou maioria parlamentar a adequação, em cada momento, entre essa participação (ou falta dela) e as políticas públicas.
Com efeito, a provisão constitucional, a este propósito, apenas estabelece o dever do Estado de “assegurar o ensino básico universal, gratuito e obrigatório”, “criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar”; e “garantir a todos os cidadãos … acesso aos graus mais elevados de ensino, da investigação científica e da criação artística” (artº 74º, 2., a) b) e c) – permitindo ao mesmo Estado conformar, em cada momento, a composição orgânica da Rede.
(Embora se deva vislumbrar no texto constitucional uma excepção: na educação pré-escolar, o artº 74º, 2., b) da Constituição expressamente estatui que o sistema público é apenas parte de um “sistema geral de educação pré-escolar” – o que remete para a existência de outros sectores não-públicos.)

3 – O mesmo não se pode dizer do Sector da Acção Social, parte integrante do Sistema de Segurança Social que a Constituição quis que fosse unificado e descentralizado, cabendo ao Estado a sua organização, coordenação e subsidiação, nos termos do artº 63º da mesma Constituição.
Com efeito, e no que toca à participação na provisão dos serviços públicos de entidades exteriores ao Estado, o nº 5 do mesmo artº 63º da Constituição especialmente consagra a função das instituições particulares de solidariedade social como um dos pilares do sistema de protecção social universal de cidadania: “5. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º.”
Quer isto dizer que se não trata, a este respeito, de saber se os sucessivos Governos podem ou não, de acordo com os seus objectivos ou ideologias, alienar esse papel que a Constituição especificamente consigna às IPSS no que respeita ao desenvolvimento da Acção Social.
Não podem!
Não deixa, aliás, de ser curioso constatar como algumas das forças políticas, ou secções delas, que se apresentam a rasgar as vestes – e por boas razões - sempre que vislumbram um qualquer desrespeito à Constituição, estejam na primeira linha da suspeição quanto às virtualidades do modelo português de protecção social, único na Europa, em que as Instituições de Solidariedade integram, de pleno direito, o modelo constitucional e legal – não cuidando aqui da vontade constituinte.
Na cerimónia de encerramento do Congresso Eleitoral da CNIS, o Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Dr. Vieira da Silva, justamente salientou o assento constitucional do papel e da actividade do Sector Solidário, no mesmo sentido do que já havia sido explicitado, no decurso do Encontro que acompanhou os trabalhos do Congresso, pelo Professor Pedro Adão e Silva – que igualmente enfatizou o carácter excepcional, a nível europeu, do modelo português.
Na mesma cerimónia, e na sequência desse papel primordial e virtuoso, quer a Presidente da Assembleia Geral cessante, Professora Manuela Mendonça, quer o Presidente da CNIS, Pe. Lino Maia, reclamaram do Governo mais respeito.
É o que falta.

Henrique Rodrigues (Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2019-01-16



















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